Por motivos profissionais, e não só por razões de cidadania, devo ver todos os dias a informação dos telejornais, em todas as versões. Mas devo confessar que esta exigência começa a ganhar, para mim, a forma de tortura diária.
“Vêm aí os Relatórios de Polícia”…
E digo porquê. A informação televisiva (falo sobretudo do prime time) está a ficar cada vez mais insuportavelmente tablóide. Cabe lá tudo menos o que é relevante, de efectivo interesse para o cidadão. É o domínio incontestado da categoria do “negativo” em todos os géneros noticiosos. E é um espaço onde ocorre cada vez mais a luta política disfarçada de informação ou de opinião. É um espaço noticioso de uma extensão incompreensível para contar coisas irrelevantes do ponto de vista do interesse público. Já tudo cabe dentro de um telejornal. Até reportagens de 35 minutos, superiores à dimensão de um qualquer telejornal europeu.
Mas ao fim dos primeiros cinco minutos de notícias a reacção começa a ser quase sempre a mesma: “aí vêm os relatórios de polícia!”. À procura de audiência, para a publicidade. Porque o crime (o sexo e a tragédia) compensa, em termos de audiências. Depois, temos os comentadores. O comentário televisivo está colonizado pela classe política (e por papagaios que pouco ou nada têm para dizer). A cidadania está transformada em público espectador de gladiadores políticos. A política transformada em espectáculo, desenvolvendo-se ao mesmo tempo como espaço de conspiração, imperceptível (mas nem sempre) à maioria dos telespectadores.
Um assassinato político em directo
No passado Domingo, tivemos um excepcional exemplo disto mesmo: Luís Marques Mendes a disparar, num ritmo alucinante, como se estivesse movido a Prozac, bazucadas impiedosas contra o seu companheiro de partido Pedro Passos Coelho. Um comentador (interessado) a assassinar, não por negligência, mas de forma premeditada, com arsenal levado directamente para o estúdio, um adversário político interno. Dizem-me que, assim, liquidando PPC, faz um favor a António Costa e a Luís Montenegro… “Sol na eira e chuva no nabal”!
Mas que o púlpito informativo de uma televisão de sinal aberto esteja ao serviço de lutas partidárias internas perante o grande público parece ser pouco recomendável. Na verdade, trata-se de um palco muito poderoso. Um palco de onde já saiu directamente (dos estúdios para Belém) um Presidente da República. Claro, não foi caso único.
Ronald Reagan já saíra do ecrã cinematográfico directamente para a Presidência USA. Tal como Arnold Schwarzenegger para o governo da Califórnia. Ou o actual (quase) Presidente Trump do Programa televisivo “The Apprentice” para a Casa Branca. Berlusconi saiu da sala de comando de Canale 5, Retequattro e Italia Uno directamente para Palazzo Chigi, o palácio do governo italiano.
Não há, pois, dúvida de que os estúdios televisivos continuam a ser púlpitos muito poderosos, usados para a luta política e para a conquista do poder. E também em Portugal o que se está a passar merece uma atenção especial. Os “intelectuais orgânicos” do establishment mediático rebelam-se contra essa turba das redes sociais que começa a roubar-lhes definitivamente o monopólio do uso legítimo da comunicação social.
A classe política, por sua vez, ocupa os monitores televisivos sem se sentir também ela instrumentalizada pelos mesmos que lhe dão voz. Estes, por sua vez, não se sentem cúmplices de estar a construir uma “sociedade do espectáculo” governada por uma “democracia do espectáculo” que menoriza gravemente a cidadania.
A informação desliza torrencialmente para o crime e castigo, a violência, a desgraça, os acidentes e as catástrofes ao mesmo tempo que dá palco ao irrelevante em nome daquele género que em linguagem teórica se chama “de interesse humano”. O mundo que corre no monitor è uma farsa que não espelha o mundo real, mas que contribui activamente para o degradar.
Os códigos éticos e a informação
Desde os finais do século XVII que se fala de “códigos éticos”, de regulação da informação. A Enciclopédia de Diderot e d’Alembert, de meados do século XVIII, já continha um “código” bastante articulado. Em 1910, no Kansas, é formalizado aquele que é considerado como o primeiro código ético. Seguiram-se inúmeros códigos.
O Conselho da Europa, na sua resolução 1003, de 1993, produziu aquele que é talvez o melhor código de sempre (“Ética do Jornalismo”). Os sindicatos de jornalistas têm os seus códigos. Hoje, os grandes jornais têm um livro de estilo com as normas a observar. Sim, é longa e substantiva a história dos códigos como é longa e substantiva essa exigência de tratar a informação como um bem público essencial para a cidadania e não como uma mercadoria subordinada exclusivamente às exigências do proveito financeiro (através da publicidade e sabe-se lá de que favores).
Um país com uma má informação é um país com uma má cidadania e uma má democracia. Mas é disso mesmo que estou a falar. De má informação que alimenta uma má cidadania e uma péssima democracia. De resto, para isto também contribui o próprio posicionamento do establishment mediático como poder e fonte de poder. E que, ao mesmo tempo que desliza torrencialmente para o tabloidismo e para o culto do “negativo” como categoria central do género informativo, se insurge cada vez mais contra a liberdade que desponta na rede e nas redes sociais, onde para aceder ao espaço público já não é necessário pedir autorização aos guardiões do espaço público, a esses “gatekeepers”, a esses “intelectuais orgânicos” dos vários poderes que precisam do espaço público para se afirmar e expandir.
Na verdade, hoje está já a afirmar-se uma forte tendência no campo da informação e da política que prescinde da lógica orgânica e territorial das grandes organizações comunicacionais e políticas. Esta tendência tem hoje já expressão nas redes sociais e em movimentos que se auto-organizam e automobilizam através da rede. Claro, aqui a chamada auto-regulação é mais difícil e exigente, mas a verdade é que se a regulação do establishment mediático existe há séculos ela, todavia, é cada vez menos praticada ou mesmo assumida, vista a degradante prática informativa a que a cidadania tem vindo a estar sujeita.
Perante isto, não há dúvida de que esta informação acabará por conhecer o mesmo destino que a política tradicional já está a conhecer, vista a crescente literacia comunicacional e política que as novas gerações estão a conquistar num espaço público diferente daquele que hoje ainda pretende deter o monopólio da informação e da comunicação social.
Bem sei que enquanto houver um sofá haverá sempre em frente um televisor. Mas também sei que no sofá adormecemos muitas vezes… E que, como sugeria Goya, “el sueño de la razón produce monstruos”! Mas é precisamente por isso que também eu já prefiro a Rede…