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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Morte de Ribeiro Santos lembrada 50 anos depois

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A morte de José António Ribeiro Santos, estudante da Faculdade de Direito de Lisboa, baleado num anfiteatro em Económicas (então ISCEF, depois ISE) a 12 de Outubro de 1972 por um agente da PIDE/DGS foi tratada durante dois dias numa conferência académica “internacional” promovida na Torre do Tombo pelo Instituto de História Contemporânea e pelo Centro de Estudos Sociais e, no próprio dia em que se assinalavam os 50 anos dos factos, numa sessão no próprio Instituto Superior de Economia e Gestão, promovida pela presidência da Escola, num “átrio das Francesinhas” que vem a ser um espaço coberto por uma tenda, que desconhecia tivesse sido acrescentado a esta escola em perpétuo crescimento físico. Em ambos os momentos houve forte presença de “velhinhos” contemporâneos dos acontecimentos e (felizmente) de jovens, sendo que as “rodas de memória” que tiveram lugar na Torre do Tombo, as quais, como a totalidade do evento, terão sido gravadas, se mostraram muito importantes para reconstituir alguns aspectos (simpáticos) da personalidade do jovem Ribeiro Santos e do ambiente do movimento estudantil da época, talvez mais radicalizado do que em anos anteriores, mas como um dos participantes de uma das “rodas de memória” referiu, então já muito afectado pela grupusculização.(i)

 

Uma percepção que nunca foi adquirida com exactidão ou se foi perdendo 

Ao longo das décadas decorridas desde 1972 o facto de que a PIDE tinha morto um estudante em Económicas nunca foi completamente esquecido, mas vi escrito algumas vezes mesmo recentemente e até por “contemporâneos” que Ribeiro Santos era estudante do Instituto Superior de Economia. Aliás num documento oficial interno elaborado algum tempo depois, também José Lamego, igualmente baleado pelo mesmo agente e entretanto preso, era descrito como estudante do “instituto superior de economia”. E no Depoimento escrito por Marcelo Caetano nos primeiros tempos do seu exílio brasileiro, era Económicas e não a Faculdade de Direito (de que Marcelo era catedrático) a bête noire do ex-Presidente do Conselho de Ministros, que aliás não se refere no livro ao caso Ribeiro Santos.

A descrição que a ex-clandestina comunista Zita Seabra deixou explanada no seu livro de memórias Foi Assim, publicado em 2007, a pags 185, é igualmente fantasista:

Em 1972, no dia 12 de Outubro, num dos múltiplos plenários que se realizavam em Económicas para discutir os programas alternativos do curso, os estudantes exigiram o marxismo nos programas. Num plenário igual a tantos outros, entraram dois pides e dispararam contra dois estudantes de Direito que participavam no plenário. Assassinaram o estudante e dirigente associativo José Ribeiro dos Santos e atingiram com um tiro José Lamego, ambos militantes do MRPP.

De facto, como tive ocasião de referir em Económicas: O Verão Quente de 1972 publicado no Jornal Tornado, em 8 de Junho de 2022, fruto das grandes lutas de 1969/70, o ISCEF já era visto como uma “ilha de liberdade” em termos de debate de ideias, mesmo nos tempos de aula(ii), e como Carlos Bastien, na altura estudante do 4º ano de Economia e posteriormente Professor do Instituto, focou na sua intervenção na sessão do Átrio das Francesinhas, o ano de 1972 havia sido dominado pela greve pela reabertura da Associação de Estudantes, encerrada após a invasão da polícia de choque em 16 de Maio.

Na mesma página do Foi Assim a autora refere ainda:

A UEC tinha praticamente uma só associação de estudantes, no ISCSPU (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas)“.

No entanto, como já indiquei em artigo anterior(iii) a influência dos estudantes comunistas nas direcções das associações de estudantes eleitas em 1972 no IST e no ISCEF era já significativa.

Entretanto, num texto muito recentemente publicado, a propósito de um espectáculo do Teatro do Vestido afirma-se que o estudante António José Ribeiro Santos foi “assassinado por um ‘agente infiltrado’ da polícia política portuguesa numa reunião no ISCEF (Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, hoje ISEG) em Lisboa”

 

Memórias (naturalmente) contraditórias e mistificações deliberadas

Um ponto que parece estar assente é que a sessão convocada para 12 de Outubro de 1972 tinha a natureza de meeting para estudantes de todas as escolas, consagrado à luta contra a repressão e à exigência de que os conteúdos académicos passassem a incluir o marxismo. Não tenho presente qual a instância em que esta convocação foi decidida (na altura as reuniões inter-associações estavam já muito afectadas pela grupusculização) e a marcação do evento para Económicas ocorreu, que eu saiba, não por convite da respectiva AE mas por ser praticamente impossível realizá-la noutras escolas, como a Faculdade de Direito de Lisboa. Que eu tenha reparado os sectores maoistas (incluindo em Económicas os chamados “pops”) convergiam no apoio à iniciativa mas a estipulação de que não se deviam realizar aulas neste dia levou a que Económicas, excepto no que se refere a estes sectores e aos utilizadores habituais da cantina, estivesse praticamente deserta de estudantes.

Recordo-me que na altura estava, após a greve vitoriosa pela reabertura da AE ISCEF, imbuído de uma sensibilidade muito “nacionalista”, considerando indesejável esta “invasão” da escola por activistas de outros movimentos associativos e ao seu abandono pelos estudantes. Além do mais, depois do levantamento da greve e da recomeço do funcionamento da cantina e instalações administrativas da Associação, e embora não tivessem sido colocados “gorilas” como em outras escolas, havia alterações peculiares no ambiente: por exemplo a cantina passou a ser frequentada por um estudante dos seus trinta anos com casaco e calças de fato (mas sem gravata), cabelo encaracolado, um sorriso persistente estampado na cara, muito perguntador e muito atento aos cartazes afixados. Procurei perceber que aulas frequentava mas só veio a admitir que estava inscrito no Instituto em regime militar.

No dia 12 de Outubro de 1972 fui contudo até ao anfiteatro onde se deveria realizar o meeting e na altura alertei um colega de Económicas que me pareceu envolvido na sua realização(iv) para que se tivesse cuidado uma vez que na cantina – ainda o tinha visto há minutos – circulava um indivíduo com um aspecto estranho muito interessado nos dizeres dos cartazes.

Algum tempo depois o pessoal que já se encontrava no anfiteatro teve notícia de que havia sido localizado um presumível informador que tirava apontamentos dos cartazes afixados e que se estava a tentar identificá-lo. A história tem sido muitas vezes contada: ao que julgo por pressão dos “captores”, dois membros da Direcção da AE foram falar com a Direcção do ISCEF mais concretamente com o Secretário do Instituto, que dirigia os serviços – julgo que o Director Léglise Vidal estaria ausente – que terá contactado a Direcção-Geral de Segurança, a qual se comprometeu a enviar dois agentes para identificar o “detido”. Este foi levado entretanto ao anfiteatro e colocado de frente para os participantes com um saco de papel (da cooperativa Livrelco, vi escrito em alguns relatos) enfiado pela cabeça, para não os identificar. A certa altura um colega, de Económicas, do sector dos “Pops”(v) entra anunciando com satisfação que dentro de pouco tempo se iria comprovar quem eram os “subversivos” que andavam pelas escolas.

O anfiteatro que, escreveram mais tarde uns instrutores “oficiais” do ocorrido estaria assim a funcionar como “cárcere privado”, e no qual cabiam 350 estudantes, nunca esteve cheio – estariam quando muito uns 100 de várias escolas e sensibilidades associativas, com o pessoal de Direito nas primeiras filas. Sentei-me mais para trás sensivelmente a meio um tanto perplexo por o informador “capturado” ser outro que não “o inscrito em regime militar” que me vinha chamando a atenção, e observando para mim próprio um tanto frivolamente que ao prisioneiro, também cerca dos 30 anos, visivelmente assustado mas muito calado, só faltavam umas orelhas de burro. Mais tarde veio a ser revelado que se tratava de um guarda da PSP possivelmente em cumprimento de uma missão de informação.

Numa das “rodas de memória” realizadas na Torre do Tombo, em que se evocaram os minutos cruciais de 12 de Outubro de 1972, um dos dois participantes, na altura estudantes de Medicina, que vieram depois a transportar nos seus carros os estudantes baleados, recordou uma intervenção de alguém que nunca mais viu posteriormente, que alertou para que seria melhor dar uma tareia no informador e mandá-lo embora – uma vez que (não me lembro de ter sido dito isto) a Pide andava armada(vi). Este participante recordou igualmente a resposta (?) de um dos estudantes de Direito ligados ao MRPP que disse que já estava aquele em poder dos estudantes e que assim ficariam três, tendo sido este dirigente o primeiro a atirar-se sobre os pides que daí a pouco entrariam.

Entrando no anfiteatro sob intensa vaia, os pides fizeram todo o caminho até ao informador, retiraram o saco que estava enfiado pela cabeça deste e encetaram um movimento de regresso para a porta do anfiteatro levando consigo aquele que tinham vindo identificar.

Um dos dirigentes associativos de Direito, de pé numa das primeiras filas do anfiteatro, lança então do seu lugar:

Eh rapazes! Não há que ter compaixão com torcionários!”

e uma dezena, talvez, de estudantes, lança-se sobre os dois pides, consegue “neutralizar” (vii) um deles, mas o outro, um tal Rocha, consegue sacar da arma e começa a disparar. Ribeiro Santos cai, atingido nas costas, e Lamego consegue desviar a arma mas é baleado numa perna. O anfiteatro despovoou-se rapidamente. Participei no êxodo, tendo contudo ido ao meeting que nessa noite se realizou no Técnico.

Por razões de que não me recordo com precisão, participei pouco no movimento associativo até ao fim do ano civil. Manuel Aranda, presidente da Direcção, e o outro colega que tinham feito o contacto com o Secretário do Instituto eram injuriados nos comunicados do MRPP / FEM-L mas só no início de Janeiro, ao que me recordo, estive com Manuel Aranda que me explicou que ia sair do país e porquê, sem que tivéssemos falado do episódio de 12 de Outubro anterior, daí que o meu conhecimento dos acontecimentos aqui abordados se restrinja à presença no anfiteatro.

Quando, tanto quanto me lembro, há uma dezena de anos no Público se evocou este dia, os protagonistas procuraram explicar o confronto que terminou tão tragicamente, como uma manifestação espontânea de raiva contra os pides que tinham surgido à sua frente. No entanto o “Eh, rapazes ! Não há que ter compaixão com torcionários !” que nunca vi reproduzido posteriormente nem identificado o seu autor, conta uma história não totalmente coincidente.

Para os 50 anos foi agora fabricada outra versão vertida num comunicado de aspecto oficial que encontrei afixado nas paredes do ANTT no primeiro dia da conferência e que, sem estar assinado, ostentava entre outros os símbolos da Comissão das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e do ANTT, pretende convencer os leitores que os pides tentaram invadir um anfiteatro a “abarrotar” de estudantes e usaram as armas nesse ensejo. Versão que uma das participantes de uma “roda de memórias” tentou com algumas nuances introduzir na sua intervenção e que veremos se volta a ser reproduzida.

De qualquer modo importará reexaminar, talvez em novo artigo a discussão do efectivo impacto do episódio na queda do regime, se Ribeiro Santos deve ou não ser qualificado como Herói, controvérsia que surgiu na roda de memórias, e as razões da impunidade da PIDE neste caso.

Para completar uma informação sobre um ponto que aqui aflorei, esclareço que o “aluno em regime militar” nunca voltou, que eu saiba, a ser visto na cantina de Económicas.

 

Notas

(i) Não conheci Ribeiro Santos, então com 26 anos e estudante do 4º ano de Direito, que esteve envolvido na formação das listas “Ousar Lutar, Ousar Vencer” da Associação Académica da FDL. Com 19 anos e inscrito no 2º ano do ISCEF havia apoiado, sem a integrar, a lista C “Por uma associação de todos os estudantes” que triunfara meses nas eleições para a Direcção e o Conselho Fiscal da Associação de Estudantes do ISCEF. A lista B ganhara as eleições para a Mesa da Assembleia Geral que ficou sendo presidida por Eduardo Ferro Rodrigues. Tínhamos contudo alguns colegas da sensibilidade Ousar Lutar, Ousar Vencer, no essencial oriundos do então Instituto Comercial de Lisboa.

(ii) Para o Pais no seu conjunto, Flamarion Maués no seu Livros que Tomam Partido regista diversas edições feitas a partir de 1968, de obras de autores marxistas.

(iii) Em anos recentes resolvi aproveitar deslocações de trabalho à Torre do Tombo para pedir acesso ao que sobre mim constasse nos arquivos da Pide / DGS . Verifiquei com grande surpresa que um conjunto de colegas de várias correntes do movimento associativo estudantil do ISCEF constante de uma lista nominativa estabelecida para o efeito, foi alvo de intensas operações de vigilância em 1972, independente de presumíveis ligações políticas – e eu não as tinha na altura – o que mostra que o poder receava a militância associativa em si mesma.

(iv) Do sector dos Pops.

(v) aaspm.

(vi) Na sessão que teve lugar no Átrio das Francesinhas, António Garcia Pereira insistiu em que o pide que baleou Ribeiro Santos entrou no anfiteatro com a arma carregada. Mas não seria isso expectável, mesmo hoje e em outras forças policiais?

(vii) Expressão usada por António Garcia Pereira na sessão do Átrio das Francesinhas.

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