Parte I: A Iniciativa de Cidadania Europeia auto-organizada
Até 2013, a política comercial da União Europeia era praticamente desconhecida pelos cidadãos europeus. Quando, nesse ano, foram oficialmente iniciadas as negociações do acordo de comércio livre entre a União Europeia e os Estados Unidos da América (TTIP), começaram a surgir, em muitos países europeus, grupos de cidadãos e associações organizados com o objectivo de acompanhar o processo de negociação do TTIP, que estava a ser conduzido de forma inteiramente secreta. Qual a razão desta mudança?
O TTIP e o CETA (UE/Canadá) são os primeiros acordos de “comércio livre” chamados “de nova geração”, cujo âmbito em muito ultrapassa a tradicional eliminação de tarifas aduaneiras sobre o comércio de bens. Este novo tipo de acordo visa liberalizar áreas tão amplas como o comércio de serviços, das compras públicas, do investimento estrangeiro e da regulamentação, eliminando as chamadas “barreiras não tarifárias”, através da harmonização de padrões sociais e laborais, ambientais, de segurança alimentar e de propriedade intelectual.
Na procura do mínimo denominador comum, a dita harmonização ocorre pelo nível mais baixo, colocando assim em jogo os padrões que configuram o modo de vida dos cidadãos. Ademais, as muitas centenas de páginas destes acordos incluem uma área ainda mais pérfida: artigos específicos de protecção ao investidor que preconizam a criação de uma justiça paralela, que permite aos investidores processarem os estados sempre que considerem que foram lesadas as suas “legítimas expectativas de lucro”. Todas estas decisões ocorrem sem se informar – para não falar em consultar – a grande maioria dos cidadãos… não fora a política comercial considerada uma das competências exclusivas da União Europeia.
A clara dominância dos interesses dos grandes actores económicos ficou patente logo na fase de preparação das negociações, ao longo de 2012 e no início de 2013: de um total de 555 contactos com o departamento do comissário De Gucht, responsável pelas negociações do TTIP por parte da UE, apenas 26 foram com ONGs, organizações de defesa dos consumidores e sindicatos; 9 foram com entidades de administração pública e 520 foram com empresas privadas. O poder dos lobbies económicos, em especial do sector agro-alimentar, da indústria automobilística e química, tornou-se óbvio.
A aliança Stop TTIP
Foi neste contexto que, no início de 2014, foi criada a Stop TTIP, uma aliança de mais de 200 organizações europeias, incluindo sindicatos, associações ambientais, organizações de agricultores e de defesa dos consumidores, com o objectivo de travar o CETA e o TTIP, por colocarem em perigo a democracia, o estado de direito, os direitos laborais, os consumidores e o ambiente.
Em Julho do mesmo ano, a aliança deu o primeiro grande passo coordenado a nível europeu, submetendo à Comissão Europeia um pedido de registo da Iniciativa de Cidadania Europeia (ICE) “STOP TTIP”.
Contudo, dois meses depois, o inesperado aconteceu, quando a Comissão rejeitou o pedido de registo da ICE, usando dois argumentos. O primeiro, de que os mandatos de negociação dos dois acordos não constituía um acto jurídico, mas antes actos internos preparatórios entre as instituições da UE não sendo, por isso, contestáveis através de uma ICE. No segundo, a Comissão afirmava não poder fazer propostas de ratificação negativas, sendo assim impossível deferir o pedido da ICE de não conclusão das negociações do CETA e do TTIP.
Esta recusa foi um golpe duro para a sociedade civil empenhada nesta causa; porém, em vez de desistir, a “Stop TTIP”, que entretanto contava com 300 membros em toda a Europa, não cruzou os braços. Em Novembro de 2014, apresentou perante o Tribunal Europeu uma queixa contra a Comissão Europeia, enquanto lançava uma Iniciativa auto-organizada de Cidadania Europeia (ICE), cumprindo à risca as condições da ICE oficial: A recolha, durante o prazo de um ano, de um milhão de assinaturas e o alcance do quórum do país em 7 estados-membros.
Após cinco dias de recolha, a ICE auto-organizada tinha já obtido meio milhão de assinaturas, não só online mas também através de inúmeras acções e manifestações em vários países europeus, nas quais informavam os cidadãos sobre as suas implicações destes acordos de comércio livre.
Ao fim de exactamente um ano, que decorreu de 7 de Outubro de 2014 a 6 de Outubro de 2015, o resultado alcançado ultrapassou estrondosamente os requisitos da UE e as expectativas do movimento: A ICE foi subscrita por mais de 3 milhões de cidadãos europeus e o quórum foi atingido num total de 23 países europeus, entre os quais Portugal.
A 9 de Novembro de 2015, a aliança “Stop TTIP” entregou ao Presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, 3.284.289 assinaturas recolhidas pela Iniciativa de Cidadania Europeia auto-organizada. Uma proeza nunca antes alcançada pelos cidadãos europeus.
A aliança “Stop TTIP” não cessava de crescer, contando, em Julho de 2015 com 500 associações, sindicatos e grupos de um larguíssimo espectro de actores da sociedade civil.
Ana Moreno, activista da Plataforma Não ao Tratado Transatlântico