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Terça-feira, Julho 16, 2024

Movimentos Islâmicos

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Porque devem estar no foco da nossa atenção

A conferência “Movimentos islâmicos: transformações após as revoluções árabes”, foi organizada pelo Centro de Estudos Al-jazeera (ACJS), realizada nos dias 24 e 25 de setembro de 2016. O relatório que considero muito pertinente conhecer, documenta as opiniões e perceções expressas pelos participantes: líderes de vários movimentos islâmicos, ao lado de pesquisadores, académicos e especialistas em grupos políticos islâmicos.

A conferência foi realizada seis anos após o que é conhecido como Primavera Árabe. A Primavera Árabe resultou em várias transformações nas esferas política e regional árabe e colocou desafios a todos os grupos intelectuais e políticos, incluindo os movimentos islâmicos. A Primavera Árabe englobou protestos anti governamentais, levantamentos públicos e rebeliões armadas que se espalharam no mundo islâmico no início de 2010. Começou em resposta a regimes opressivos e um baixo padrão de vida, começando com protestos na Tunísia.

Vinte e três trabalhos foram apresentados para debate na conferência por uma grande variedade de participantes. Das diferentes opiniões emergiu a realidade de que os movimentos islâmicos não se enquadram num único modelo. Diferentes dados políticos, sociais e históricos tiveram influencia no seu eclodir e as diferentes realidades políticas em que se desenrolou determinaram diferenças. Quando se observam, como parte de um estudo objetivo, as revoluções atualmente em curso e se examinam os diferentes padrões do pensamento dos líderes que foram surgindo durante as várias fases de avanço e recuo de movimentos revolucionários e contra revolucionários, é que se podem começar a tirar conclusões sobre diferenças e semelhanças destes movimentos.

De acordo com a percepção de vários intervenientes os movimentos islâmicos têm uma nova abordagem do conceito de Estado-nação e a separação entre “Dawah” religioso e político. Da’wah é uma palavra árabe que tem o significado literal de “convocar” ou “fazer um convite”. Este termo é frequentemente usado para descrever como os muçulmanos mostram às outras pessoas sobre as crenças e práticas de sua fé islâmica.

A importância de Da’wah no Islão vem de palavras escritas no Alcorão e que incitam os seus membros a “Convidar (todos) ao Caminho de seu Senhor com sabedoria e bela pregação. Discutir com eles e tentar fazer-lhes entender que o seu Senhor sabe melhor quem se desviou de Seu Caminho e quem recebeu boa orientação”. Acredita-se que o destino de cada pessoa esteja nas mãos de Allah, portanto, não é responsabilidade ou direito de muçulmanos individuais tentar “converter” outros à fé. O objetivo de da’wah, então, é meramente compartilhar informações, convidar outras pessoas a uma melhor compreensão da fé. Cabe, obviamente, ao ouvinte fazer sua própria escolha.

Na Conferência Islâmica foi realçada a necessidade de parceria e reconciliação política entre todos os estratos sociais, a fim de gerir o estágio de transição e incentivar a renúncia à cultura de “exclusão” e a noção de “substituir os outros”. Os participantes também expressaram a necessidade de movimentos islâmicos exercerem “autocrítica” institucionalizada, a fim de identificar e controlar possíveis falhas, além de focar em pesquisas intelectuais atualizadas e planeamento estratégico.

No início de 2011, as mudanças significativas experimentadas por alguns países árabes marcaram um ponto possível de paradigma nas esferas política e regional árabes. Os islâmicos desempenharam um papel distinto no processo de “transição política” nos diferentes países. Na Tunísia e Marrocos, o Nahdha (literalmente Renascimento) e os Movimentos de Justiça e Desenvolvimento venceram as eleições, seguidos pelo Partido da Liberdade e Justiça no Egito. Também na Síria, Líbia, Iêmen e Iraque, movimentos islâmicos estão envolvidos em confrontos armados e desafiam os movimentos contra-revolucionários que tentaram reverter a incipiente tendência democrática.

Seis anos após o início da Primavera Árabe, os poderes políticos ligados ao chamado “Movimento Islâmico” enfrentaram vários desafios locais, regionais e internacionais depois que a “corrente subterrânea insidiosa e profunda” – ao lado da rede de interesses regionais e internacionais – conseguiu impedir o progresso da transição democrática. Eu diria que há um movimento semelhante aos esforços que o Papa Francisco tem feito para modernizar e humanizar uma hierarquia religiosa que se espartilhou em conceitos de interesses próprios e corporativos, que nada têm de religiosos.

Os dilemas decorrentes dos “sucessos” alcançados pelo movimento contra-revolucionário nos países da Primavera Árabe foram atribuídos aos movimentos islâmicos.

Foi muito discutido o como lidar com as fases de transição política e com influências regionais e internacionais. As transformações intelectuais, políticas e organizacionais vivenciadas pelo diverso “Movimento Islâmico” sobre questões como a separação funcional entre o Dawah e a política e o estado moderno estabelecido foram amplamente debatidas.

A sessão de abertura no primeiro dia da conferência abordou questões ligadas à identidade dos poderes islâmicos e às circunstâncias de sua formação. Alguns analistas definiram essas circunstâncias como sendo criadas pela repressão política, juntamente com divisões sectárias e influências regionais e internacionais. Outra escola de pensamento distingue entre as diferentes formas no processo dos movimentos islâmicos: a primeira é quando os movimentos islâmicos são percebidos como subsidiários inspirados ou promovidos por uma entidade geral. Ou seja, promovidos de fora para dentro. Mas, na segunda, esses movimentos islâmicos estabeleceram-se por intermédio de entidades locais ou nacionais. Após a Primavera Árabe, os islamitas lidaram com o processo de transição política de diferentes maneiras. Alguns dos movimentos apoiaram as revoluções (Tunísia, Egito, Iemen), enquanto outros seguiram o caminho da emulação e analogia, apesar das variações (Mauritânia). O excepcional caso marroquino, onde os movimentos aproveitaram o ambiente da Primavera Árabe, iniciou uma nova tendência política em Marrocos.

Transformações islâmicas pós-revolução

A segunda sessão da conferência examinou o impacto intelectual, político e organizacional da Primavera Árabe nos movimentos islâmicos. Uma característica proeminente das transformações organizacionais dentro dos movimentos islâmicos é a maneira pela qual Dawah, as funções educacionais e o trabalho político foram separados, permitindo que o papel funcional da política e da religião seja claramente definido. Mas, segundo alguns participantes, a separação entre política e religião não é aplicável na sua realidade política e mencionaram o recurso para fazer trabalho político dentro dos outros partidos. Da mesma forma, a tendência de selecionar líderes obscuros e desconhecidos mudou para campanhas eleitorais totalmente divulgadas, com cobertura visível nos órgãos de comunicação social.

Há quem não acredite que as transformações na esfera islâmica ainda não tenham se estabelecido, já que a região árabe ainda vive turbulenta, mas isso não impede uma transformação intelectual dentro desses movimentos no que diz respeito à perceção do estado moderno. As revoluções também motivaram os movimentos islâmicos a reavaliar suas estruturas organizacionais, que tendiam ao elitismo no passado. Verificou-se que as elites escolhidas não foram capazes de levar a cabo o processo completo de transformação, levando alguns movimentos a adotarem ideias dos seus partidos políticos paralelos.

Os movimentos islâmicos estão enfrentando três desafios. O primeiro envolve a gestão de assuntos de organização interna e a possível transformação em partidos civis equipados com instituições democráticas competentes. O segundo é o desafio de consciencialização: os movimentos islâmicos mostram fraco desempenho na elaboração de uma base teórica que permita emergir um esquema político que garanta boa governação. O terceiro é o desafio político que envolve o “elemento nacional”: ainda parece haver um sentimento de culpa entre os islâmicos por adotar uma “orientação nacional”.

A terceira sessão da conferência analisou a evolução das atitudes dos movimentos islâmicos e sua orientação política à luz dos processos adotados pelo movimento de mudança. Uma abordagem estudou o impacto do ambiente político geral no movimento tunisino Nahdha. O movimento foi transformado com o objetivo de se tornar um partido no poder ou parcialmente no poder. A maior transformação do movimento envolveu a mudança de um partido inclusivo para outro especializado em assuntos políticos. O processo de transformação forçou o partido Nahdha a escolher entre os interesses “únicos” do partido, assumindo o poder com base nos resultados das eleições ou dando primazia aos interesses do país e protegendo a precária experiência democrática tunisina. A importância da reconciliação inter-partidária deve ser enfatizada durante uma fase de transição democrática. Por exemplo, o movimento Nahdha concordou em participar do governo de unidade nacional para apoiar a experiência democrática incipiente.

Porque devem estar no foco da nossa atenção estes Movimentos Islâmicos? Porque facilitam a nossa compreensão do seu paradigma que talvez não seja assim tão distante do paradigma das igrejas ditas cristãs.

E o tema será continuado numa crónica seguinte!


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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