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Sábado, Dezembro 21, 2024

Mozart, A Flauta Mágica, sublimação da Nigredo

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

Uma amiga igualmente atenta a estas questões do simbolismo das obras de arte chamou a minha atenção para uma obra de um grande erudito, especialista de Mozart:

M.F.M. van den Berk, The Magic Flute (na trad. inglesa) An Alchemical Allegory, ed. Brill, Leiden-Boston, 2004.

Encomendei a obra, e a melhor maneira que tenho de agradecer a informação, preciosa para quem como eu tem a paixão da Flauta Mágica, é dedicar-lhe este post.

A obra de van den Berk demonstra, à saciedade, como tanto o libretista como o compositor eram profundamente conhecedores da matéria simbólica, alquímica (e maçónica, pois eram ambos maçons) que procuravam ilustrar, pelo texto, pela concepção cénica e naturalmente pela música, numa distribuição de papéis e de árias musicais correspondentes ( também elas carregadas de inspiração simbólica: o trovão da rainha da noite, a alegria natural, algo inconsciente mas muito sedutora de Papageno, um dos principais agentes da acção, o lirismo extático dos príncipes que se amam, a severidade serena da intervenção de Sarastro, o Mestre de toda a operação concebida para sublimar o espaço ocupado pela nigredo da Rainha, decaída, da Noite).

A capa do livro reproduz o frontispício do libretto de 1971, já carregado de representações alquímicas: o templo ao fundo, como um forno de tijolo ( o forno onde os adeptos trabalhavam os metais da Pedra); o vaso hermético à direita, como uma taça do Graal; sob o vaso a caverna de Saturno ( emblema da melancolia, nigredo que anunciava e propiciava o início da Obra de transformação); e à esquerda uma face da pirâmide ( o Egipto era considerado a primeira pátria da alquimia) com o horóscopo do adepto, que jaz à sua frente, aguardando o momento em que será “ressuscitado” passando a nova fase do seu percurso anímico.

van den Berk procura, ao longo do seu estudo, uma fundamentação documental, histórica, sociológica, artística – que lhe permita depois, através da abundante citação de textos e gravuras de alquimia – concluir que essa é a marca, a lição fundamental da Ópera de Mozart, e que ao contrário do que se possa julgar, plenamente entendida em todos os sinais, pelo público da época.

As ilustrações que escolhe são de gravuras célebres do século XVII, como as da Atalanta Fugiens, nuns casos, ou anteriores, como do Splendor Solis, ou mesmo do Rosarium Philosophorum (este estudado por Jung em todos os seus detalhes). Para depois, no confronto com esquissos que foram feitos para a Ópera nos fazer ver como o simbolismo é o mesmo, e como tal -simbolismo alquímico- deve ser lido (visto, ouvido…)

Vemos ao alto dois dos seis esquissos da produção de 1795, apresentada em Viena e da autoria de Emanuel Schikaneder ( 1751-1812 ), o libretista amigo de Mozart, produtor, encenador e até actor quando era necessário.Foi acompanhado, na escrita lírica, por Karl Ludwig Giesecke (1761-1833) também ele bom conhecedor das doutrinas alquímicas.

Logo de início, a grande serpente, ou dragão (que na simbólica alquímica representa a força negra da matéria a sublimar) persegue o Príncipe Tamino, que desmaia de susto e será salvo pela três Damas de negro, servidoras da Rainha da Noite. Elas são 3 e a serpente, nesta produção da época de Mozart, é cortada em 3 partes, como se vê na gravura. A marca do 3 pode ser lida como os 3 princípios: enxofre, mercúrio, sal.E de facto, o enxofre masculino está representado pelo Príncipe, o mercúrio feminino e mutável, pelas Damas, e o sal – mediador- por Papageno que também ali se encontra, pois chega logo a seguir ao desmaio de Príncipe ( vinha entregar pássaros às damas da Rainha da Noite, que em troca lhe davam pão e vinho (indicação do alimento do corpo e da alma).Na gravura seguinte, numa fase mais adiantada da Ópera, vemos o Príncipe Tamino, como se fosse um novo Orfeu, a tocar a sua flauta (mágica) no meio dos servos do Templo representados como figuras simiescas. Mas é preciso saber que o macaco faz parte, simbolizando o negro, do bestiário alquímico, desde os tempos mais remotos. Há na mitologia egípcia um Hermes de cabeça de macaco. Tamino, com a sua Flauta Mágica, domará a violência natural daqueles elementos que o rodeiam.

van den Berk descreve a Rainha da Noite como deusa primordial, ligada aos mitos da Grande-Mãe, da Mãe-Terra, cujos cultos aterradores, praticados na escuridão de cavernas, envolvendo sacrifícios rituais de imolação, podiam agora, na época das Luzes, ser sublimados: transformando a Isis negra numa figura como a da princesa Pamina, tocada por um Sarastro-Osiris solar, que a entregaria ao par certo, Tamino, para uma conjunção andrógina perfeita.

A Ópera abre cantando o Amor, como força natural e absoluta, e fecha com o mesmo canto.

O amor sublimado ( processo que se verifica melhor na relação Papageno-Papagena, o passarinheiro coberto de penas, como os pássaros que vendia) é o verdadeiro fundamento da harmonia das esferas, cósmicas, naturais e sociais.

O que se impõe, e talvez eu o faça, noutro blog, de simbologia e alquimia, é a análise das cenas mais interessantes (para o nosso ponto de vista) do libreto, ele em si mesmo um verdadeiro manifesto da fé na capacidade alquímica e maçónica de mudar o mundo. Do negro e lunar primitivismo ao branco (sublimado) do solar Iluminismo.

O autor deste magnífico estudo que venho a comentar recorda, reproduzindo as ilustrações, a visita de Mozart em 1770 ao templo de Isis, em Pompeia.

Não era possível não se ter impressionado com o que viu.

O volume de van den Berk tem ainda um outro aliciante: o libreto completo da edição mozartiana, com as anotações do compositor, e a gravação em cd-audio da Ópera nesta versão, como até hoje nunca foi interpretada.

Ocupei-me um pouco desta Ópera em dois livros de ensaios: A Arte de Jardinar, editado pela Presença em 1991; e Teatro e Sociedade, editado pela Universidade Lusófona, em 2007.

Mas o prazer que tenho em ver num grande erudito uma interpretação tão próxima do que tenho tentado fazer com esta e outras obras, torna-se ainda maior quando penso num meu outro estudo, sobre um conto de Goethe: A Simbologia Alquímica no Conto da Serpente Verde de Goethe, editado pela Universidade Nova de Lisboa, em 1976, enquanto preparava a minha dissertação de doutoramento sobre A Alquimia No Fausto I e II de Goethe.

Devo dizer que nunca me afastei destas matérias e ainda hoje é o seu estudo que me move.

Um abraço de agradecimento a esta amiga, também ela Professora Universitária: Cristina Álvares.

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