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Sábado, Julho 27, 2024

Murnau e o Expressionismo Alemão

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

A UFA, Universum Film Aktiengesellschaft, foi fundada na Alemanha em 1917, para prestigiar uma nação que se queria pioneira em muitos domínios e também no da arte cinematográfica.

A produção do Fausto de Murnau, em 1926, serviu esse propósito, ao contar com a participação dos melhores actores, do melhor argumentista e até, para a legendagem (estava-se ainda na fase do cinema mudo) de um dos mais célebres poetas da época.
A lenda do dr.Fausto, o sábio cansado do seu saber e que aceita fazer um pacto com o diabo, é conhecida. Ganha juventude e experiência de vida, e acaba nesse percurso aventuroso por se apaixonar por uma jovem donzela crente e ingénua – algo que não estava nos planos de Mefisto, o diabólico tentador – e acabará por justificar, pela força desse amor tão puro, a redenção do velho sábio.

No momento final, quando a alma de Fausto talvez devesse estar perdida para Mefisto, é o amor de Margarida, na sua entrega e pureza que acaba por salvá-lo. Margarida e Fausto, unidos num só, exemplificam na obra de Murnau um ser completo, andrógino, perfeito, como os seres que Platão descreve no Banquete.

Os cultores da obra de Klimt hão-de recordar o célebre quadro O Beijo.

Se o filme, carregado de um idealismo algo ingénuo, nos pode parecer datado, a razão fica a dever-se mais ao tratamento do tema do que a qualquer outra razão: pois para a época, quando mal se estavam a desenvolver as técnicas da fotografia, a técnica de luz e sombra, a capacidade de encenação e enquadramento dos grandes planos, das cenas e movimentos de multidão – tudo faz desta obra uma realização pioneira, e de Mestre.

Murnau retira da lenda e da obra de Goethe apenas o que lhe convém para uma narrativa poética que se deseja de grande intensidade dramática (o que nem sempre aos nossos olhos será conseguido, pois o excesso, na arte, não acrescenta, diminui , ao contrário do que se possa julgar; na arte o menos é mais, o mais é de mais!).

Tinha havido versões e experiências anteriores – dos irmãos Lumière e de George Méliès em França, em finais do século XIX, bem como na América: um Fausto de 1900 e outro de 1909, do realizador Edwin S. Porter. A lenda e o herói que desafiava o mundo e o diabo atraíam os artistas. Outro ilustre, D.W. Griffith dirigiu uma versão actualizada de Fausto, com o título de Sorrows of Satan, Desgostos de Satã, no mesmo ano do filme de Murnau.

Mas este destaca-se em tudo das tentativas dos outros: bem ao gosto de uma germanidade feita de magia e mistério, como nos contos dos irmãos Grimm, abundam trevas e luz, fogos, fumos e nevoeiros,ventanias de alma, – tudo com a mestria que os técnicos alemães tinham desenvolvido à época, no que os críticos chamavam de “sinfonia de imagens”.

Há uma herança da cultura Expressionista, na obra de Murnau, que explica muito do cuidado quase escultural com que rostos e massas humanas são tratadas nas cenas de maior destaque: grandes planos de Fausto, Mefisto ou Margarida, multidões correndo em desvario nas cenas de fuga à peste que assola a cidade.As cenas de multidão já tinham tido o seu Mestre em Eisenstein, no célebre Potemkine, de 1925.

Mas o maior mérito de Murnau é o cuidado com que a encenação era concebida; podia demorar horas e horas de ensaio, impacientando os actores, até se chegar ao momento da filmagem. Aos impacientes ele dizia: se não gostam, não voltem.

Referi a influência do Expressionismo na arte fílmica de Murnau:

algo que se vê nas danças da morte das multidões em fuga por causa da peste, nesse gosto do macabro, no culto do horror (que o levará também a escolher a história do vampiro Nosferatu, noutro dos seus grandes filmes).Note-se ( como na Roda do Tempo de que se fala na filosofia hindú ) como os temas se tornam, também na produção artística, temas recorrentes: foram este ano sucesso de vendas e agora serão sucesso de bilheteira os românticos livros/filmes de vampiros para adolescentes. Claro é discutível a sua qualidade artística, ao passo que na obra de Murnau o pioneirismo foi indiscutível.

O movimento Expressionista surge num momento em que a Alemanha antevê a guerra (e a miséria que acarreta consigo) o declínio moral e social que fora já antecipado em muitas obras de teatro e em muita de pintura produzida então e da qual Murnau era conhecedor.
As revistas contendo manifestos, poemas e poetas ilustres, são em especial DER STURM e DIE AKTION (1910) cujo interesse pela grande poesia francesa é manifesto: incluem logo desde 1911 traduções de Verlaine, Rimbaud, Baudelaire, estabelecendo uma ponte com o século XIX literário, precisamente aquele de que os modernistas desejarão libertar-se, nos anos 20, após a guerra de 1914-1918.

É sobretudo no teatro e na pintura que o Expressionismo se revela com mais força: uma força que pretende ser toda feita do interior da alma, com suas amarguras, ilusões e desilusões, melancolias, sofrimento.Brecht é um dos dramaturgos de maior influência, com a peça BAAL; mas pouco depois, criando a doutrina do teatro épico e didáctico a sua preocupação será a de renovar, revolucionando politicamente a sociedade do seu tempo; outros continuarão com a linha de pessimismo radical que não antevê mudança, como se as visões de horror já fossem um prenúncio da guerra que se seguiu, a de 1939-45.
Yvan Goll, um dos poetas que pretende ajudar a que se entenda o seu propósito e o dos outros, escreve que o movimento não estabelece uma doutrina teórica claramente definida;integra todos os “ismos” dos vinte primeiros anos do século;e ainda:” em estilos muito diversos o expressionismo traduz acima de tudo o vivido”.

É a vida, tal qual a vivem, a observam à sua volta, idealizam ou abominam, o que os expressionistas pretendem mostrar, “exprimir”.

No teatro, para citar um outro vulto de grande renome e importância, Frank Wedekind, com as peças O Espírito da Terra e A Caixa de Pandora depois reunidas com o título de LULU representará os próprios limites da arte expressionista, vindo a inspirar um compositor como Alban Berg em 1929.

Sonha-se com uma Ética nova, uma Estética nova – numa sociedade a recuperar das ruínas da guerra.

E infelizmente este sonho não será cumprido, pois os movimentos da História giram em sentido contrário.

O HOMEM NOVO – para o qual até os futuristas tinham esboçado uma nova moda – transformar-se-á num perigoso FANTOCHE, mexido pelos cordéis do nazismo e do antisemitismo crescentes.

O óleo (colocado acima) de Emil Nolde, de 1917, intitulado JOVEM e PIERROT, revela, na sua forma grotesca e caricatural, como o mundo se tornara num circo, num cabaret de riso deformado, onde nenhuma forma de idealismo mais puro haveria de ter lugar.

A sonhada “Obra de Arte Total” que Wagner, no século XIX, concebera, guardará até aos nossos dias a mácula de ter sido idolatrada por um Hitler que a confundiu com as suas próprias ideias de uma germanidade particular, inexistente, sem nada de universal, ao contrário do que o compositor desejara para si e para as suas óperas na grandiosa inspiração que as sustentara.

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