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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Música tardia

Beatriz Aquino
Beatriz Aquino
Formada em Publicidade e Propaganda. É escritora e atriz de teatro. Nascida no Brasil a viver em Portugal.

Minha esposa era professora de piano. Ensinou por anos em casa. Dedicava-se aos outros.
Eu tinha ciúmes. Não dava muita atenção. Nunca quis aprender essa coisa de música.

Ela morreu há 10 anos.

Um dia depois da sua morte, sentei à frente do seu piano. Meu arqui-inimigo. Primeiro briguei com ele machucando seus teclados, pressionando brutalmente o pedal.

O fustiguei me vingando pelas tardes e noites que ele me roubou a companhia dela.

Ele sonava rouco, histérico. Suas notas assustadas pulavam do seu interior como vítimas de um mal trato inédito e inesperado.

O fiz chorar. O amaldiçoei por ele ter roubado de mim instantes tão preciosos com ela. Instantes que não  voltariam mais.

E de tanto fazê-lo chorar, chorei também. Choramos juntos. De dor e de saudade. Ele também sentia falta dela.

De repente o piano começou a emitir outro som. Não respondia mais com medo à minha agressão.

Enquanto eu pressionava com brutalidade os teclados, ele emitia uma melodia suave pegando meu coração de surpresa. Pressionei os teclados ainda mais forte, mas ele não sentia mais a minha dor. A melodia harmônica foi ficando ainda mais alta e mais intensa. Uma  música se formou. Uma música conhecida aos meus ouvidos. Aos nossos ouvidos. Aos meus e aos dele. A música dela… A preferida dela. Ela estava ali… Tocando pra mim. Tocando para nós dois. Nos tocando.

Aquela música que eu ouvia todas as tardes e que me enchia de ciúmes por levá-la de mim. Aquela música era pra mim. Sempre foi pra mim. E eu nunca soube. A música falava de amor, de entrega, de proximidade.

“Estou com você meu amor. Em teu sono e em tua vigília…”

Ela cantava pra mim. Cantava pro piano. Ela era a própria música. Nós, meros instrumentos.

Chorei copiosamente. O piano chorou também. Chorou como nunca. Tanta saudade carregávamos no peito…

Depois desse dia, passei a toca-la todas as tardes. E ela, nos tocava.

Hoje toco piano em um coral.

Dou aulas sem nunca ter tomado uma lição. Viver com ela foi o suficiente para me transformar em música…

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