Minha esposa era professora de piano. Ensinou por anos em casa. Dedicava-se aos outros.
Eu tinha ciúmes. Não dava muita atenção. Nunca quis aprender essa coisa de música.
Ela morreu há 10 anos.
Um dia depois da sua morte, sentei à frente do seu piano. Meu arqui-inimigo. Primeiro briguei com ele machucando seus teclados, pressionando brutalmente o pedal.
O fustiguei me vingando pelas tardes e noites que ele me roubou a companhia dela.
Ele sonava rouco, histérico. Suas notas assustadas pulavam do seu interior como vítimas de um mal trato inédito e inesperado.
O fiz chorar. O amaldiçoei por ele ter roubado de mim instantes tão preciosos com ela. Instantes que não voltariam mais.
E de tanto fazê-lo chorar, chorei também. Choramos juntos. De dor e de saudade. Ele também sentia falta dela.
De repente o piano começou a emitir outro som. Não respondia mais com medo à minha agressão.
Enquanto eu pressionava com brutalidade os teclados, ele emitia uma melodia suave pegando meu coração de surpresa. Pressionei os teclados ainda mais forte, mas ele não sentia mais a minha dor. A melodia harmônica foi ficando ainda mais alta e mais intensa. Uma música se formou. Uma música conhecida aos meus ouvidos. Aos nossos ouvidos. Aos meus e aos dele. A música dela… A preferida dela. Ela estava ali… Tocando pra mim. Tocando para nós dois. Nos tocando.
Aquela música que eu ouvia todas as tardes e que me enchia de ciúmes por levá-la de mim. Aquela música era pra mim. Sempre foi pra mim. E eu nunca soube. A música falava de amor, de entrega, de proximidade.
“Estou com você meu amor. Em teu sono e em tua vigília…”
Ela cantava pra mim. Cantava pro piano. Ela era a própria música. Nós, meros instrumentos.
Chorei copiosamente. O piano chorou também. Chorou como nunca. Tanta saudade carregávamos no peito…
Depois desse dia, passei a toca-la todas as tardes. E ela, nos tocava.
Hoje toco piano em um coral.
Dou aulas sem nunca ter tomado uma lição. Viver com ela foi o suficiente para me transformar em música…