Ao incendiar a estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, o grupo Revolução Periférica queria provocar uma polêmica, e provocou, acerca da história que nos é contada nos bancos escolares. A história dos dominantes.
Muitos criticaram o incêndio ao bandeirante. Esquecem que “a luta política condiciona o conhecimento do passado e a seleção e hierarquização dos fatos em relatos consistentes nos quais os acontecimentos e os heróis podem surgir como legitimadores do status quo atual e da dominação de classe. Ou da contestação a esse status quo a partir da emergência de novas forças sociais cujo objetivo é construir novas, mais avançadas e justas maneiras de viver em sociedade”, como escreveu José Carlos Ruy (1950-2021). Os bandeirantes estavam a serviço da manutenção do sistema opressor.
Aqui a música popular brasileira em toda a sua diversidade tenta contar a história do ponto de quem sofre com os desmandos dos poderosos. Aqui a história do lado de quem luta contra o sistema. De quem visa construir o novo. De quem não chora estátuas de assassinos e escravagistas queimadas ou derrubadas.
Porque “quem vai impedir que a chama/saia iluminando o cenário/saia incendiando o plenário/saia inventando outra trama” (Chico Buarque e Pablo Milanéz). História que segue.
Cidinho & Doca
A dupla de funk carioca, Cidinho & Doca se originou na favela Cidade de Deus, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. É o favelado falando com muita propriedade da favela para desconstruir o mito de que em favela só tem bandido.
“Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer
Com tanta violência eu sinto medo de viver
Pois moro na favela e sou muito desrespeitado
A tristeza e alegria aqui caminham lado a lado
Eu faço uma oração para uma santa protetora
Mas sou interrompido à tiros de metralhadora
Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela
O pobre é humilhado, esculachado na favela
Já não aguento mais essa onda de violência
Só peço a autoridade um pouco mais de competência
Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci”
Rap da Felicidade (1994), de Cidinho e Doca
Milton Nascimento
Mais uma vez Milton Nascimento, de coração mineiro, resgata a luta de classes e lado a lado com a luta antirracista.
“Filho do senhor vai embora
Tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes
Deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar
Some longe o trenzinho ao Deus-dará
Quando volta já é outro
Trouxe até sinhá mocinha para apresentar
Linda como a luz da lua
Que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor
E agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada
Já não brinca mais, trabalha”
Morro Velho (1967), de Milton Nascimento
Tom Jobim e Vinicius de Moraes
Os cariocas da gema Tom Jobim e Vinicius de Moraes fizeram inúmeros clássicos da bossa nova. A música popular brasileira nunca mais foi a mesma depois deles. Aqui cantam a necessidade de o morro descer para o asfalto porque a revolução virá da periferia.
“Morro pede passagem
Morro quer se mostrar
Abram alas pro morro
Tamborim vai falar
O morro não tem vez
Mas se derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar”
O Morro (1962), de Tom Jobim e Vinicius de Moraes; canta Tom Jobim
Elizeth Cardoso
A Divina, Elizeth Cardoso (1920-1990) foi uma das mais importantes cantoras do país. Sempre atenta às novidades, gravou em 1958 a música Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com João Gilberto ao violão.
“Vai, vai barracão
Pendurado no morro
E pedindo socorro
Ai, à cidade a teus pés
Vai, barracão
Tua voz eu escuto
Não te esqueço um minuto
Porque sei que tu és
Barracão de zinco”
Barracão de Zinco (1953), de Luiz Antônio e Oldemar Magalhães; canta Elizeth Cardoso com Época de Ouro e Jacob do Bandolim
Emicida
O paulista Emicida se transformou numa das grandes vozes da periferia na música popular brasileira. Canta a vontade de superar esse sistema opressor, dado voz à classe trabalhadora.
“Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência
É roubar um pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes”
AmarElo (2019), de Emicida, Felipe Adorno Vassao e Eduardo Dos Santos Balbino; sample Sujeito de Sorte, de Belchior; cantam Emicida, Majur e Pabllo Vittar
Paulinho da Viola
Um dos mais importantes compositores brasileiros, Paulinho da Viola canta a dor de um povo perseguido e a esperança de construir o novo, sabendo que a revolução além de periférica é negra e feminina.
“Por fim achei um corpo, nega
Iluminado ao redor
Disseram que foi bobagem
Um queria ser melhor
Não foi amor nem dinheiro a causa da discussão
Foi apenas um pandeiro
Que depois ficou no chão
Não tirei minha viola
Parei, olhei, fui-me embora
Ninguém compreenderia um samba naquela hora
Hoje eu vim, minha nega
Sem saber nada da vida
Querendo aprender contigo a forma de se viver
As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender”
Coisas do Mundo Minha Nega (1968), de Paulinho da Viola
Chico Buarque e Pablo Milanéz
Chico Buarque e o cubano Pablo Milanéz dispensam apresentações. Em defesa da unidade da América Latina cantam que “a história é um carro alegre/Cheio de um povo contente/Que atropela indiferente/Todo aquele que a negue”.
“Quem vai impedir que a chama
Saia iluminando o cenário
Saia incendiando o plenário
Saia inventando outra trama
Quem vai evitar que os ventos
Batam portas mal fechadas
Revirem terras mal socadas
E espalhem nossos lamentos
E enfim quem paga o pesar
Do tempo que se gastou
De las vidas que costó
De las que puede costar
Já foi lançada uma estrela
Pra quem souber enxergar
Pra quem quiser alcançar
E andar abraçado nela”
Canção pela Unidade Latino-Americana (1975), de Pablo Milanés, adaptação de Chico Buarque feita em 1978; cantam Chico e Milton Nascimento
Texto em português do Brasil