Era filho único o meu avô. O nome dele tinha origem latina, quando na antiga Roma se denominavam “aqueles que nasciam com os pés para a frente”.
De nariz aquilino, ruivo e de olhos azuis, era de origem judia, tanto de lado de mãe, como de pai. Casaram-no, como era costume à época, com uma mulher oito anos mais nova, de estatuto social e económico muito inferior, mas que, da união, a importância e a altivez se lhe subiu à cabeça e se lhe colou à pele, de tal modo que se tornou a Senhora, rodeada de empregadas e subalternos vários que mais parecia um quadro saído da “Casa grande & Senzala” de Gilberto Freire.
Na casa grande e abastada, só a alegria e o humor – mordaz e delicioso – do meu avô imperava e se fazia sentir. À Senhora não se lhe sentia algum contentamento e sentimento, como se eles dela não fizessem parte, e dela apenas gravo na lembrança a beatice a que diariamente se devotava.
Desse contrato de união nasceram três filhos, e para desgraça do meu avô, todos herdaram o temperamento da progenitora, sinistros e falazes.
Ainda hoje me lembro de cada uma das suas longas e intermináveis histórias com que me brindava, ele que nascera no início do século XX, mais precisamente no ano de 1900. Muito emotivo, ele que assistira e recordava com a maior das emoções a queda da monarquia e o surgir da República, contava-me todos os acontecimentos dessa época, e, emocionado, a ponto de muitas vezes ter de interromper os seus relatos para se recompor de tanta emoção, defendia vivamente a República e a sua ascensão. Anticlerical ao extremo, nada nem ninguém temendo, olhando para trás, vejo o quanto o meu avô era avançado nas ideias e nos ideais, e que perante o contexto histórico e social em que ele viveu, foi, sem dúvida alguma, um homem corajoso, amante da liberdade de pensamento, sempre fiel às suas próprias opiniões, sem jamais abdicar delas.
O tempo passa mas ainda sinto todo o seu amor e toda a sua ternura me envolvendo. O meu avô era daquelas pessoas que não poupava nas manifestações de amor e de carinho. Todo ele era afeto, e todo ele era afeição. Ah, meu querido avô.
Como é bom ter um avô para recordar e sentir assim. Quem recorda e vive assim um avô, vive com ele para sempre.
Quando ele morreu, senti uma dor tão grande que a minha vida pareceu terminar também ali junto com ele. Demorei uma eternidade a gerenciar essa dor e essa saudade. De tal modo que elas vivem e convivem até hoje dentro de mim.
Que falta me faz o meu avô.
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