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Sexta-feira, Dezembro 20, 2024

Na era da negação da política o Coringa é o novo Che

Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical e jornalista do site Radio Peão Brasil. Escreveu o livro "O mundo do trabalho no cinema", editou o livro de fotos "Arte de Rua" e, em 2017, a revista sobre os 100 anos da Greve Geral de 1917

Enriqueceu muito o filme trazê-lo para uma situação atual: o contexto das grandes manifestações de rua. É perfeitamente cabível que, como no Chile, Equador, Paris e Hong Kong, Gotham City seja palco destes eventos. Isso porque, sendo uma megalópole ela exprime as mais acirradas contradições do capitalismo fomentando o individualismo, a violência e a desigualdade social.

Subindo a Rua Cardeal Arcoverde no domingo, 12 de janeiro, vi um jovem com a camiseta do Coringa de Joaquim Phoenix. Lembrei de diversas fotos que vi nas redes sociais de jovens protestando no Chile, Equador, Paris e Hong Kong com camisetas ou máscaras deste personagem.  Pensei que os jovens adotaram o Coringa como antes usavam a camiseta e a inconfundível boina do Che Guevara. E também como há pouco tempo usaram as máscaras de Guy Fawkes, do filme V de Vingança. Em cada tempo e a cada personagem, entretanto, o sentido muda. O sentido político e coletivo parece cada vez mais dar lugar a uma postura individual, inconsequente e anárquica.

Manifestante com a máscara de Guy Fawkes em Edimburgo, 2008

Demorei para assistir Coringa porque tinha com preconceitos contra o filme. Isso porque penso que não cabe ao arqui-inimigo do Batman um passado. Neste sentido considerava, e ainda considero, a representação de Heath Ledger, em Batman o Cavaleiro das Trevas, de 2008, não só a mais completa construção de um vilão, mas o Coringa definitivo.

A morte precoce do ator logo após as filmagens contribuiu para a mítica em torno deste papel. Mas não só isso. Acostumado a papéis doces, Ledger foi fundo no Coringa deixando a impressão de que deu ao personagem suas dores e dramas mais arraigados.

No filme de 2008 ele encarna como ninguém o desfrute da condição de marginal. Já falei em outro texto, sobre os 10 anos de Batman o Cavaleiro das Trevas, que “O Coringa está muito mais próximo de Alexander DeLarge, o Alex, de Laranja Mecânica (Stanley Kubrick), do que de algum fantasioso Duende Verde, em Spiderman, ou Lex Luthor, do Superman”. Ele está no rol dos vilões complexos, de figuras que encontraram na maldade uma forma de existir neste mundo.

Heath Ledger como Coringa no filme de 2008

Vou mais além. O Coringa, embora isso não apareça em O Cavaleiro das Trevas, compartilha com a criatura de Victor Frankenstein, o ser a quem acostumamos chamar de “Frankenstein” (Victor Frankenstein é o cientista e a criatura não tem nome), da revolta nascida da rejeição. O ser horrível, pálido e desengonçado encarna a repugnância uma vez que os homens comuns veem refletidas nele suas próprias maldades e feiuras.

E é neste ponto que entra o Coringa de Joaquin Phoenix. O filme conseguiu a proeza de construir uma versão de uma história sem destruir a versão anterior. Phoenix captou o que parece de fato ser a história de Arthur Fleck, antes dele se transformar no Coringa. Tal qual Frankenstein, Fleck foi moldado por uma sociedade que o renega, ainda que ele tenha buscado afeto e integração.

Esta situação de vítima era justamente o que eu temia encontrar neste filme. Mas o diretor foi perspicaz em levar o personagem a romper com seu passado e com o que o ligava a uma vida normal. Sua brutal transformação faz com que sua história seja condizente com o possível passado do vilão interpretado por Heath Ledger, daí a complementariedade.

Arthur Fleck forjado na revolta e transformado em Coringa, não é revolucionário. É um aniquiliador. Um agente do caos. Embora não houvesse a necessidade de ser literal, ele mesmo fala no filme que não é político e que não acredita em manifestações sociais. E isso é uma contradição, uma vez que grandes manifestações explodem a partir de suas ações e de sua figura.

Manifestante fantasiado de Coringa no Chile em outubro de 2018. Foto Alberto Valdes/EPA

Enriqueceu muito o filme trazê-lo para uma situação atual: o contexto das grandes manifestações de rua. É perfeitamente cabível que, como no Chile, Equador, Paris e Hong Kong, Gotham City seja palco destes eventos. Isso porque, sendo uma megalópole ela exprime as mais acirradas contradições do capitalismo fomentando o individualismo, a violência e a desigualdade social.

No mundo real, como no filme Coringa, chama a atenção nestas revoltas a negação da política, de partidos, sindicatos ou de qualquer instituição social. Ressentimentos, antissociabilidade e revanchismo tomam o lugar da luta organizada por direitos, por igualdade, equidade e justiça para todos. “Matem os ricos”, eles dizem. Como se simplesmente matar os ricos pudesse mudar a dinâmica do mundo. Como se a ideia fosse simplesmente reinar sobre o caos.

Muitas vezes, como acontece no Brasil atual, do esgoto de tal fenômeno saem justiceiros e outsiders que pretensamente negam a grande política, mas que chafurdam em seus recantos mais obscuros. Parece até coisa calculada. Uma nova forma de alienação, travestida de ativismo. Um radicalismo irrealista que nos separa de um engajamento realista e consequente.

Assim é o Coringa e isso é o que se espera dele enquanto vilão. Um ser avulso, sem perspectivas, que vive apenas o calor do momento. A ironia é que no bojo de toda essa negação, Coringa é um filme político que diz muito sobre o nosso tempo.

 


Texto em português do Brasil


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