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Sexta-feira, Abril 25, 2025

Na estrada que dá para Emaús – I

Rui Miguel Duarte
Rui Miguel Duarte
Filólogo; investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Consideremos companhia, companheiro, companheirismo, acompanhar e outras formadas da mesma raiz. Preciso é recuar ao latim vulgar e a um derivado por prefixação: cum (com) e panis (pão). O que tem isto a ver com pão? Precisamente, outra coisa é necessária: que nos abstraiamos do aspecto meramente gustativo do pão e que pensemos nas palavras como portadores de uma história cultural. As palavras são símbolos da realidade (signos linguísticos). A realidade não é apenas a exterior, do mundo em que os homens vivem, mas também dos significados que estes dão ao mundo. As comunidades partilham experiências, estas tornam-se convenções e conceitos e estes vão enriquecer as palavras com novas acepções.

O significante pão deixa de significar apenas alimento, para significar outra coisa. Companhia, companheiro de cum + panis, aquele ou aquela que comunga o pão connosco. O pão, à margem do seu valor como alimento essencial para uma grande parte da população humana do planeta, engordou como conceito, convertendo-se em signo cultural que excede a dimensão do alimento para absorver coisas laterais a este, os ritos sociais. A mesa não é apenas o lugar do alimento. Em sociedades em que os factores sociais são definidores dos seus modos ser e estar, a comunhão à mesa conta-se entre eles. E não vale a pena pensar na colectivização da refeição (entre outras formas de colectivização) nas sociedades socialistas.

Nas sociedades e aldeias tribais da África, Ásia ou América do Sul, come-se em conjunto. Na velha Lacedemónia (ou Esparta), vivia-se colectivamente, comia-se colectivamente e colectivamente se combatia. Na sociedade que se expressava em latim vulgar, partilhar do pão à mesma mesa era um hábito que criava a comunhão fraterna e amistosa, na aldeia e no interior da família, promovia alianças, afectos e sentimentos, ideias e vontades.

E, a despeito das mudanças de hábitos e paradigmas nos tempos presentes, em que estando à mesa estamos alhures e nenhures, em virtude da ligação permanentes às redes sociais e à teia global da internet, ainda podemos apreciar a delícia antiga da mesa em comum, em companhia. Hoje, fazem-se negócios à mesa; em igrejas protestantes e evangélicas, há reuniões de culto (entre os primeiros cristãos, como parece dever-se apreender pelos textos neotestamentários, seria assim em todas as reuniões) que terminam com uma refeição em comum; congressos encerram-se com um jantar dos participantes. À mesa ainda continuam a florescer essas coisas tão essenciais e úteis (como o pão), mas igualmente belas, que são a amizade e o amor.

A tragédia grega antiga compreende um elemento estético chamado ἀναγνώρισις (anagnórise, reconhecimento). Deve-se a Aristóteles (Poética 1452a29, 1452b19) a aplicação do termo e do conceito especificamente à tragédia, de modo que viria a marcar indelevelmente a teoria e crítica literárias relativas a este género. O enredo das peças complicava-se e chegava a um clímax. Consistia na revelação de uma verdade ou da identidade de uma personagem; essa revelação produzia um ponto crítico, do qual resultava a peripéteia (vocábulo do qual provém o nosso peripécia), o volte-face abrupto da Fortuna e o desfazer da trama.

Por exemplo, em Édipo Rei de Sófocles (quiçá a mais conhecida e lida dentre as tragédias que os Helenos nos legaram), acumulavam-se as suspeitas, terríveis suspeitas. Finalmente, aparece em cena um pastor, que conta como por piedade recolhera, muitos anos antes, um menino destinado a morrer, porque um oráculo declarara que essa criança, depois de crescer, haveria de matar o próprio pai e casar-se com a própria mãe, reis de Tebas. Cuidara dele e entregara-o aos reis de Corinto, que o educaram como filho.

Édipo tem conhecimento do oráculo (já nesse tempo as notícias se espalhavam com a ligeireza do fogo em eucalipto seco) e foge de Corinto, desconhecedor porém de que a sua relação com o casal régio de Corinto era de adopção. Na estrada, desvenda o enigma da Esfinge, que mata, e mata também um viajante, ao cabo de uma disputa. O prémio para a eliminação da Esfinge, que aterrorizava as redondezas, foi a mão em casamento da rainha viúva da cidade mais próxima. Aí viveu e reinou, teve quatro filhos.

Mas, desgraças e peste assolavam a cidade. Um adivinho interveio. E o pastor falou: essa criança que ele recolhera era Édipo, o rei de Tebas. Eis a anagnórise; o herói, até aí ignorante, passa a conhecer aquilo que o próprio público já percebera: o viajante que matara na estrada era o seu pai; a rainha, sua esposa, era a sua mãe. O desfecho precipita-se: Édipo cega-se a si próprio; Jocasta, esposa e mãe, suicida-se.

Outro exemplo, do Frei Luís de Sousa, tragédia do nosso Almeida Garrett. D. Manuel de Sousa Coutinho casa-se com D. Madalena de Vilhena, que se reputava viúva em virtude da morte do seu marido, D. João de Portugal, no desastre de Alcácer-Quibir. Porém, o cadáver nunca aparecera, destino incerto partilhado com o rei D. Sebastião. Mas se o nobre militar não volta, volta um romeiro. A trama culmina na anagnórise: esse romeiro, viajante religioso, era o próprio D. João de Portugal, vivo. O casamento de D. Madalena e D. Manuel era portanto ilegítimo, pois a esposa não era afinal viúva. A filha nascida era-o igualmente. O casal decide abraçar os votos da vida religiosa, como forma de fugir do mundo e de se submeter à penitência pelo adultério. Frei Luís de Sousa foi o nome adoptado por esposo.

Estes dois papéis do pão, o de catalisador social e charneira numa cadeia de eventos, estão nos textos que vamos visitar, ambos do Novo Testamento. O primeiro narra a Última Ceia, especificamente o momento em que Jesus revela que vai ser traído e aponta o culpado. Todos os Evangelhos relatam esse momento (Mateus 26.23; Marcos 14.20; Lucas 22.21; João 13.26). Cito da tradução do texto joanino: “«É aquele a quem eu der o bocado de pão que vou molhar no prato.» Jesus pegou depois num pedaço de pão, molhou-o e deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes.”

Os textos paralelos apresentam variantes textuais e elementos descritivos de pormenor. O joanino é o único em que Jesus molha um pedaço de alimento numa malga com molho para o dar ao culpado; nos restantes, é este quem pratica essa acção, notando o Mestre ser esse o sinal de reconhecimento. Porém, surge aqui um problema: se há divergências pouco significativas, sendo de pormenor, já as traduções são em geral frustres.

Por exemplo, o testemunho de Mateus lê literalmente: “aquele que mergulhar a mão comigo no prato”. Em todos, com a excepção de Lucas, é usado o verbo etimologicamente relacionado com baptismo, no sentido primário de mergulhar, no caso num recipiente. Intui-se assim que nesse recipiente haveria um molho. Mais é aqui que as interpretações dos elementos descritivos e, por consequência, das traduções (que são todas elas interpretações) suscitam a maior das questões para o que interesse na economia desta reflexão: em nenhum lugar se fala de pão.

O vocábulo grego no texto joanino é ψωμίον, e ocorre nos versículos 26 e 27. Significa pedaço (de pão ou de outro alimento). Por que razão se tem entendido especificamente como pedaço de pão? Parece, portanto, que é de uma tradição que se trata. Testemunhos manuscritos da antiga versão vertem como panis. O Codex Colbertinus (Parisinus Latinus 254, do séc. XI-XII) lê panem (acusativo, naturalmente, por ser complemento directo) nas duas ocorrências. O Codex Bezae (do séc. VI, conhecido como ‘D’, da Biblioteca Universitária de Cambridge), por seu turno, lê bucellam em ambas. Trata-se de uma tradução mais literal do grego. Jerónimo, na sua Vulgata, verte respectivamente por panem e bucellam. Terá sido a partir deste documento que esta tradição exegética se firmou? E isto de tal modo que mesmo a tradução do passo paralelo de Mateus em A Bíblia para todos assim lê.

Pode-se igualmente compreender esta interpretação como natural, assente no puro empirismo: o que melhor serve e mais se usa para mergulhar num molho ou num caldo? Pois então, o pão! Todavia, não o dizendo claramente o texto, manda a prudência que o hermeneuta (e por extensão o tradutor) se atenha ao que ele de forma expressa diz, acautelando extrair uma interpretação exclusiva do texto, se este, naquilo em que é obscuro, dúbio ou aberto, permite outras, igualmente legítimas. Com efeito, uma outra é possível: um pedaço de carne.

Da carne, bem entendido, de borrego assado, a refeição tradicional na ceia pascal. Por outro lado, a imagem costumeira do pão que mergulha num molho é a de uma pão fofo, comum, com côdea e miolo, isto é, fermentado. Importa, a este respeito, lembrar um outro pormenor significativo da gastronomia cultural e religiosa judaica: tratando-se de uma ceia pascal, o pão utilizado era, por tradição, o ázimo, não levedado, designado em hebraico matza.

Este pão é seco, chato: a massa não sobe por ser retirada da cozedura antes de sofrer a fermentação, assemelhando-se, depois de cozido, a uma bolacha de textura dura. Não será o melhor pão para embeber num caldo e levar à boca, pelo menos em comparação com o fermentado, o normal. Mas este hábito existia. A língua grega conservou na sua história a marca do hábito: em grego moderno, pão é ψωμί. Os hábitos são transformadores e forjam o léxico e a semântica.

Recapitulemos: há neste episódio um sinal de anagnórise, precipitador do desenlace da trama. Mas, apesar das interpretações que fizeram tradição, nada há que nos diga, claramente e para além de qualquer dúvida, que o pão seja aqui esse sinal. Ainda que se possa admitir esta interpretação como possível. Numa leitura simbólica e alegórica, o pão como sinal de anagnórise da traição representa o mais gritante contraste com o pão da ceia pascal, que é selo de aliança, união e amor.

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