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Domingo, Dezembro 22, 2024

Visita aos painéis de Almada Negreiros da Gare Marítima de Alcântara

almada2Entra-se por uma porta cinzenta de ferro e vidro, que denuncia a traça de Porfírio Pardal Monteiro, o arquitecto responsável pelo edifício. Erigida na década de 40 do século passado, em plena 2ª Guerra Mundial, foi a primeira gare a ser construída para dar resposta ao tráfego marítimo e portuário, continuando a operar até hoje. Primeiro, surgiu a de Alcântara e seguiu-se a da Rocha Conde d’Óbidos. Um terceiro projecto, uma gare no Cais do Sodré, nunca chegou a ser concretizado.

No primeiro andar do edifício de Alcântara, a sala impressiona por três motivos: a acústica (uma pessoa pode ouvir-se a si própria num eco “duplo” e muito claro), o mármore que não acusa a passagem do tempo (mais de 70 anos) e claro, os painéis de José de Almada Negreiros, que recebem os visitantes desde a inauguração do edifício. Um olhar mais atento fará compreender porque motivo José Augusto França declarou estas pinturas “a obra-prima da pintura portuguesa da primeira metade do século”, como pode ler-se no livro “Almada – O Português Sem Mestre”. Os dois trípticos e os dois isolados, fruto de uma encomenda do regime ao artista, são o resultado da técnica da pintura mural a fresco e das muitas influências que o artista teve enquanto viveu e trabalhou em Paris. A riqueza de cores e tonalidades, a firmeza e rigor quase geométrico do traço, parecem ser um contraponto claro contra o cinzentismo do Portugal de Salazar, mesmo retratando episódios da História e mesmo sendo esta uma encomenda do regime. Pintor, escritor, desenhador, bailarino, coreógrafo, Almada Negreiros, considerado um dos grandes da cena artística portuguesa do século XX, foi um homem à frente do seu tempo, e amigo de outras grandes figuras como Fernando Pessoa. São parte da História de Portugal as suas colaborações para as revistas literárias “Orpheu” e “Portugal Futurista”.

almada3O primeiro tríptico tem como frase cimeira: “Lá vem a Nau Catrineta, que tem muito que contar” e é dedicado à famosa lenda sobre a qual Almada Negreiros disse a Rui Mário Gonçalves, autor do livro “Almada”: “Nau Catrineta, único ponto em que encontrei de facto a tradição oral do povo português e do mar”. O segundo tríptico é “Quem nunca viu Lisboa nunca viu coisa boa”, dedicado à sua cidade; curiosamente, Almada Negreiros nasceu em São Tomé e Príncipe. O primeiro isolado tem por mote “D. Fuas Roupinho, 1º Almirante da esquadra do Tejo” e representa a famosa lenda da praia da Nazaré. O outro isolado, “Ó terra onde eu nasci”, é uma alegoria ao Portugal rural.

Estas obras estão patentes ao público, através de marcação, como conta ao Tornado Manuel Loureiro, representante do Porto de Lisboa. “A ideia surge ainda durante o início dos anos 90”, num programa de abertura do Porto de Lisboa às escolas, com dois tipos de visita que se mantêm até hoje: uma dedicada aos painéis de Almada Negreiros na Gare Marítima de Alcântara e outra “numa vertente de Geografia e História que tem abrangido “alguns milhares de alunos” do 10º ao 12º anos de escolaridade. O responsável esclarece que as gares marítimas “não são museus” pelo que “não estamos perante uma abertura ao público”: “no entanto aceitamos todas as marcações de visitas, com alguns dias de antecedência porque é um espaço multiusos”, para evitar que as datas colidam com as de outros eventos que venham a ocorrer. Manuel Loureiro explica que “se houver alguma exposição sobre um determinado tema, e que não seja sobre Almada Negreiros, é um evento que iria colidir com essa tipologia de visita. No entanto, tentamos sempre que possível satisfazer todos os pedidos”. O responsável recorda que a 31 de Outubro, Dia do Porto de Lisboa, as portas estiveram abertas ao público todo o dia para quem quisesse (re) descobrir os painéis. Revela ainda que as visitas são gratuitas para todo o público e que podem ser marcadas de segunda a sexta-feira às 10h30 e às 14h30.

almada4Quanto aos painéis em si, Manuel Loureiro recorda algumas curiosidades: as pinturas (oito frescos no total) foram concluídas em tempo recorde (60 dias) e o artista contava apenas com um ajudante que misturava as tintas. Almada Negreiros executou os enormes frescos equilibrado em andaimes de madeira. A encomenda do Estado tinha um prazo de três anos, entre os esboços e a conclusão da obra, e Almada terminou-a em dois anos. Por este trabalho, auferiu 200 contos (valor da época). A sala onde estão os painéis é considerada a “sala de visitas” da Gare e na encomenda foi pedido que o multifacetado artista focasse episódios da História de Portugal. “Daí a Nau Catrineta, a lenda da Nossa Senhora da Nazaré, parte da nossa História, mas com um traço muito moderno”, sublinha Manuel Loureiro. “Estas pinturas têm cerca de 70 anos. Já foram restauradas, mas mesmo assim, vê-se que a durabilidade e qualidade com que isto nos chega implica uma utilização muito cuidada dos materiais”. Sendo José de Almada Negreiros um artista à frente do seu tempo, como conseguiu ele escapar ao estatuto de artista do regime de Salazar? “Quando se põe a questão de Alcântara, ele era de facto o mais moderno que tínhamos, e muito à frente do seu tempo”, “multifacetado, era o homem que se impunha neste cuidado com a imagem”. Em Alcântara, o pintor cumpriu exactamente a encomenda que lhe fora feita, mas como homem visionário, na Rocha Conde d´Óbidos “há uma espécie de desafio ao poder” ao retratar a vida sacrificada do povo trabalhador (pescadores, varinas, operários…) e a temática da emigração. Manuel Loureiro revela ainda que o próprio Almada Negreiros confessou numa entrevista que os painéis da Rocha Conde d’Óbidos foram os trabalhos que mais prazer lhe deram fazer.

“Por detrás destes painéis estão histórias”, parte da História de Portugal, que podem ser seguidas por todas as idades, desde o ensino básico ao superior, explica o responsável. Manuel Loureiro manifestou ainda o desejo de que os turistas que chegam a Lisboa através dos navios de cruzeiro visitem os painéis na Gare e apela aos operadores turísticos para que incluam nos seus roteiros de visita por Lisboa estas obras de Almada Negreiros.

Maria Otília, aposentada, conseguiu “por acaso” estar com o Tornado e ver pela primeira vez os painéis de Almada Negreiros na Gare Marítima. Confessa saber pouco da obra do modernista: “estava curiosa e estou um pouco admirada porque fiquei com a impressão, depois de ter visto um documentário sobre o Palácio da Cidadela , que era mais modernista”. A visitante, que teve uma fase de preferir viajar para o estrangeiro mas está “a redescobrir o prazer da História” através de passeios por Lisboa, insiste para que o público vá conhecer os painéis. Confessa-se triste porque nos museus “vê-se mais estrangeiros” e com humor relembrou que chegou a andar sozinha com os seguranças dos museus atrás dela a visitá-los. “Aconselho a virem aqui!”, diz Maria Otília.

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