Por várias circunstâncias podemos aceder a novos dados, a novas informações e fazer uma releitura das fontes escritas que alteram a leitura que nos foi veiculada.
Relativamente à dominação masculina nas sociedades ocidentais é muito difundida a ideia de que ela foi pacificamente aceite. Digamos que faz também parte da história da discriminação ocultar quem se opôs e contestou o domínio e a subjugação.
É a velha técnica de apresentar como natural o que é cultural e, assim, conduzir ao conformismo e à passividade.
Para justificar esta tese aponto apenas dois exemplos, um ao nível da religião, outro da filosofia.
Na história das religiões, as primeiras figuras de imagens sagradas são mulheres, algumas grávidas, e muitos dos mitos originais salientam o poder criador das mulheres, sendo estas ligadas à vida e à fertilidade, situação que é frequentemente “ignorada”.
Relativamente ao cristianismo e à Bíblia, foi feita uma interpretação que, por um lado, suaviza a figura fracturante de Cristo e, por outro, ignora o papel fundamental de figuras femininas na vida e na morte de Cristo.
Retirou-se dos textos sagrados a figura de Lilith e ignora-se uma interpretação de Eva como possível metáfora para a desmedida curiosidade e interesse do ser humano pelo conhecimento.
A versão “oficial” é a que a apresenta como metáfora do “mal”. E toda a história subsequente se construiu a partir desta ideia de maléfica” e/ou inferior, deixando na sombra todas as figuras femininas e o seu papel criador ao nível do pensamento, da arte, da própria religião.
Assim como foi esquecido o papel da mulher nos primeiros séculos do cristianismo e durante a Idade Média.
O mesmo aconteceu relativamente à filosofia (e também à ciência).
As mulheres que pensaram, investigaram e construíram saberes foram votadas ao esquecimento, a uma não-existência. Só muito recentemente se começou a falar sobre algumas filósofas e cientistas, por exemplo, Hipátia de Alexandria, filósofa e matemática, responsável pela escola platónica de Alexandria.
Também a recensão que foi feita dos grandes filósofos tendeu a ignorar os aspectos do seu pensamento que não se coadunavam com a visão “oficial”. Textos que apresentavam perspectivas diferentes foram esquecidos.
É bem significativo o exemplo de Platão que, embora reduza as mulheres a uma situação de infantilidade, irracionalidade e inferioridade equiparável, por exemplo, à dos escravos, apresenta uma posição que foge à representação vigente quando se refere ao estatuto das mulheres na cidade ideal.
Com efeito, no livro V da República considera que todas as tarefas, inclusive as que se referem aos assuntos de guerra, estão ao alcance das mulheres: “elas tomarão parte em tudo o que diz respeito à guarda da cidade” (República, 457 b).
Em síntese, também no campo filosófico as mulheres foram discriminadas e isso aconteceu sempre que a história da filosofia (e da ciência) deixou na sombra as mulheres que se destacaram na busca do conhecimento. Este processo acontece ainda hoje, sendo bem visível ao nível académico e nos currículos escolares.
Deste modo, parece-me legítimo concluir que os caminhos da igualdade passarão inevitavelmente por uma outra leitura da História que tire da sombra tudo o que lá está esquecido.
Porque, de facto, a História pode sempre ser escrita/lida de outro modo.
Leia, Na sombra – Parte 1