Não é à toa que Nanni Moretti costuma ser comparado a Woody Allen. Ambos participam com frequência nos seus filmes, normalmente temperados com humor, mesmo em temas pesados e nutrem de uma visão não muito optimista da vida. Minha Mãe é mais um filme sobre a perda (depois de O Quarto do Filho, Palma de Ouro, em 2001), que nos chega quatro anos depois de Habemus Papam – Temos Papa. É um filme em que Moretti evoca a morte da mãe da protagonista – mas a mãe de Nanni (Agata) falecera durante a rodagem anterior -, realizadora em plena rodagem, mas envolta com a doença da mãe e diversos outros problemas que a consumiam. Foi após a sessão de imprensa que nos encontrámos com Nanni Moretti no topo de um bar da moda, junto à avenida Croisette, em Cannes, para falar deste drama existencialista, dos seus contornos pessoais e da pujança actual do cinema italiano, que este ano teve três filmes italianos a competir para a Palma de Ouro – um era Matteo Garrone (Il Raconto dei Racconti) e o outro Paolo Sorrentino (Juventude). O realizador, argumentista e actor fala devagar, com longas pausas, ao mesmo tempo que reflecte sobre cada palavra, cada pedaço de vida…
Em Minha Mãe trata de novo um tema muito pessoal. Sente que a sua própria vida faz parte íntima dos seus filmes?
Sim. Por exemplo, mesmo em Habemos Papom, quando filmei naqueles lugares sumptuosos tinha sempre um ponto de vista pessoal. Para mim fazer um filme, não é apenas uma aventura profissional é também um investimento pessoal. Pode ser um filme autobiográfico mesmo quando falo de um papa deprimido.
Sabia desde o início deste projecto que o papel do realizador seria uma mulher? Não considerou fazê-lo?
Não, desde o início percebi que eu não poderia fazer esse papel, ou outro homem qualquer. Achei que seria mais interessante contar esta história do um ponto de vista feminino. Queria atribuir a uma mulher as características que normalmente são associadas aos homens. Queria que fosse uma mulher a lidar com esta sensação de não conseguir aquilo que quer fazer. Não queria que fosse uma mulher acolhedora, simpática, não era o que queria. A Margherita não está em paz com ela própria. Luta muito com ela.
Até que ponto esta ideia de nos mostrar um realizador a trabalhar permite reflectir sobre o seu próprio trabalho?
Não sei. Mesmo que seja uma mulher?
Sim, mesmo que seja uma mulher.
Não sei. A função do cinema para mim, seja no Caimão ou Habemos Papam é sempre algo presente. Nos meus filmes existe a realidade, mas também um outro ponto de vista nessa realidade. Neste filme, não é só a realidade, mas também os sonhos e a fantasia. Não me incomoda se o espectador não se dá bem conta se está a ver uma cena que está a ver na realidade ou se é uma recordação.
Porque decidiu que ela deveria estar a fazer um filme político?
Já que no filme se vêm os problemas da Margherita, a vida dela é cheia de incertezas, queria que o filme fosse o contrário, algo cheio de certezas. Ela está presa aos seus problemas e não consegue ordená-los, ao passo que o filme é bem estruturado. Não queria que ela fizesse um filme a la Nanni Moretti.
No filme, a realizadora diz que os actores deveriam deixar de ser eles próprios quando actuavam. É um ponto de vista que partilha?
Sim, é algo que eu penso, mas não sei se consigo explicar… Como espectador, mas também enquanto realizador, não gosto de actores que se identificam de tal maneira com a personagem que desaparecem. Agrada-me um actor que interpreta a personagem, mas que conserva algum distanciamento. No entanto, eu próprio não faço esse discurso aos actores. Nunca lhes pediria isso, mas, no entanto, é algo que gostava de lhes dizer. No fundo, acabo por conseguir aquilo que quero, mas apenas através das repetições.
Porque contratou John Turturro e o que pretendia ao convidar um actor americano?
Escolhi-o porque existe algo sempre de louco na sua interpretação. Mas ele tem uma relação próxima com Itália, fez lá um documentário, trabalhou com realizadores italianos e os avós dele eram italianos. Foi um grande prazer trabalhar com o John Turturro. Ele compreendeu logo a personagem, mas também aquilo que poderia acrescentar improvisando. Se fosse há 20 ou 30 anos atrás nunca teria permitido um actor improvisar no meu set… Mas desta vez permiti, até porque ele é muito divertido. Quando um actor faz isso tem de ter alguém que o ajude e a Margherita ajudou-o.
Acha que o cinema é um modo de compreender a realidade?
Sim, mas não é uma terapia para os realizadores…. Sim, é isso.
O cinema ajuda-o a conhecer e lidar melhor com a consciência da morte?
Este tema já era abordado em outros filmes. Não é um tabu para mim. O que me interessa é contar aqueles momentos de um modo realista. E não ter medo de contar este tema.
Depois viver a experiência da morte da sua mãe, como avalia a ideia da sua própria finitude? Tem receio da morte?
Não. Como disse, o filme não tem essa função terapêutica. Poderá ter para alguns, mas para mim, não. Talvez como tempo possa contar eventos de uma forma autobiográfica e poder conhecer-me um pouco melhor a mim mesmo. Mas não quero mudar nada.
Este é um filme sobre as mudanças que ocorrem depois da morte. No seu caso, quando partir, o que acha que fica? Os seus filmes ou há, para si, outras coisas mais importantes?
Espero que no meu caso possa deixar algo mais além disso, sobretudo para aqueles que me conheceram melhor. Ficaria muito triste que deixasse apenas os meus filmes.
A utilização do latim no filme é uma metáfora da memória?
É um outro detalhe autobiográfico. A minha mãe ensinava latim e o meu pai era professor de grego. Mas este é um filme sobre o choque, sobre aquilo que fica quando as pessoas morrem. A ligação é muito forte entre a neta a avó, os livros, as caixas dos ex-alunos. É aquilo que resta.
Disse há alguns anos que em Itália existia um acerta crise do cinema italiano. Mas hoje há vários realizadores italianos fortes. E, curiosamente, a usar a língua inglesa, como sucede este ano aqui em Cannes, em competição, com Matteo Garrone (Il Raconto dei Raconti/Tale of Tales) e Paolo Sorrentino (Juventude). Existe algum sentido de comunhão ou proximidade entre todos?
Não vi ainda os outros filmes, porque foram apenas agora lançados em Itália. Mas agrada-me que existam tantos filmes aqui em Cannes. Mas acabam por ser explorações individuais, não tanto a ideia de que o cinema italiano funcione assim tão bem. Não me parece sequer que se tenha alterado tanto o clima e a atenção do cinema italiano. Quando venho a França percebo que aqui a importância do cinema é completamente diferente.
Alguma vez filmaria em Inglês? No entanto, sempre tem o Turturro que fala em inglês no filme…
Não me parece, a minha língua é o italiano.
Costuma sentir, tal como a Margherita, as mesmas dúvidas, sem saber por onde vai? Sente às vezes essa confusão no set?
Sim, claro. Os filmes começam na segunda e o segundo dia é para mim como o segundo dia de escola. Tenho as mesmas dúvidas de quando começo e a mesma insegurança. Em particular as repetições são sempre o período mais cansativo. Quando chego à montagem, sinto-me mais descontraído, porque normalmente trabalho apenas com mais uma pessoa. Mas não tenho um plano a seguir.
Como consegue o equilíbrio entre o drama e a comédia?
É o meu modo de contar as histórias. Não é algo voluntário, uma medida, uma percentagem. Desde as minhas primeiras curtas, há 40 anos atrás. É a forma como me exprimo. Não sei explicar, mas é como sucede. Como se tivesse necessidade de ambas. Não só no cinema, mas também na minha vida. O equilíbrio vem primeiro da escrita do guião e depois da montagem.
Pode dizer algo sobre a banda sonora escutamos do filme? Foi uma escolha pessoal?
Por vezes, há casos em que começo a montar um filme e acho que não terei necessidade de usar uma musica original, mas apenas sons musicais. Neste caso, percebi que queria uma musica gravada. De resto, o Arvo Part tem sido muito usado no cinema. Por isso queria algo menos usado.