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João de Sousa

Sábado, Dezembro 21, 2024

Não houve eleição e não há presidente

Desde que a opinião pública brasileira descobriu a natureza das mensagens trocadas entre o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol ficou claro que não houve nada parecido a eleições minimamente legítimas no ano de 2018. O que vimos foi simplesmente um processo sem condição alguma de preencher critérios básicos de legitimidade. Ou seja, uma farsa, mesmo para os padrões elásticos da democracia liberal.

Como todos sabem, as mensagens demonstraram algo cuja descrição correta só pode ser uma rede de corrupção envolvendo membros do Poder Judiciário. Pois é corrupção do Estado toda ação feita tendo em vista a distorção de procedimentos legais para benefício próprio. O sr. Moro e seus asseclas utilizaram dinheiro público como se fosse privado (no caso do pedido do sr. Dallagnol para uso de R$ 38 mil da 13ª Vara para o pagamento de campanha publicitária), aproveitaram-se financeiramente da condição de servidores públicos com informações privilegiadas (ao, em meio a processo envolvendo alguns dos maiores agentes econômicos nacionais, serem pagos em palestras milionárias), tentaram tomar para si a gestão de R$ 2,5 bilhões da Petrobras por meio da criação de uma fundação privada: tudo em nome ao combate à corrupção.

Como se isto não bastasse, o sr. Moro foi flagrado “melhorando provas”, agindo juntamente com procuradores para fazer do julgamento de um dos mais importantes casos da política brasileira uma simples encenação. Pois todos, independente de quem sejam, têm o direito a um julgamento justo e imparcial. Mas isto não aconteceu no caso que estava sob sua jurisdição.

Seus apoiadores afirmam que era necessário “quebrar as regras” para conseguir enfim combater o pior de todos os males que assola esse país desde o momento que suas terras foram invadidas por portugueses, a saber, a corrupção. No entanto, ninguém precisa acreditar nessa história cínica. Na verdade, o sr. Moro quebrou todas as regras possíveis para benefício próprio, ou seja, para prender o candidato à Presidência que impedia seu próprio projeto pessoal de se tornar presidente em 2022. Ninguém que tem interesse pessoal em um processo pode ser o juiz do mesmo. Mas como ninguém parou o sr. Moro, ele pode ser agora catapultado para o centro da política brasileira pelas mãos de um político que ele, mais do que ninguém, elegeu ao tirar o primeiro colocado de circulação, ao alimentar o noticiário com notícias construídas tendo em vista o calendário eleitoral. Que ninguém se engane. Este senhor já está em campanha, sua mulher já está em campanha, seus apoiadores já estão em campanha.

Por outro lado, não precisou mais do que sete meses para o governo que ele ajudou a eleger demonstrasse sua própria rede de corrupção. Casos de financiamento ilegal no partido deste que ocupa a Presidência, envolvimento de seu filho senador em desvios de verba de gabinete, envolvimento de sua família com milícias. A lista não é pequena.

Diante deste cenário, basta juntar os pontos para tirar as reais consequências. O que vimos no ano passado foi uma eleição fraudada, viciada, montada em todas as peças para ter o resultado que teve. Não há razão alguma para respeitá-la. Uma eleição real pede partidos livres, possibilidade de todos se candidatarem e não interferência de poderes extra-eleitorais nos processos em curso. Não há eleição real quando se escolhe quem pode e quem não pode concorrer.

O Brasil segue sem presidente. Quem está no poder sabe tanto disto que sequer finge governar para a maioria do povo brasileiro. O sr. Bolsonaro governa para os porões da caserna de onde saiu, além de governar para consolidar a mobilização dos 30% da população brasileira que seguirão lhe apoiando. Ele sabe que este é seu teto.

Seu ato sórdido de falar sobre um desaparecido político na cadeira de um barbeiro contando a história de seu pretenso justiçamento por membros da luta armada, quando todas as informações do estado mostram seu assassinato sob tortura não é “mais uma derrapada”. É um ato de governo pensado e encenado. É a sua real concepção de governo e que consiste em mudar paulatinamente o centro dos limites do intolerável. Os que dizem que “são só palavras” não entendem nada sobre o que palavras realmente são. Palavras são o que temos de mais real, pois sua circulação autoriza ações, violências, afetos e túmulos.

No entanto, Bolsonaro sabe ainda algo mais. Algo que seus opositores não sabem ou parecem não querer saber: que enquanto não houver incorporação efetiva da maioria que não lhe apoia em um processo comum, os 30% que lhe apoiam serão mais do que suficiente para ele continuar no governo. Se há algo que deve nos preocupar não é exatamente o que faz o sr. Bolsonaro, mas o que nós não fazemos.

Há algumas semanas, o País viu a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira desde o início da ditadura militar. A reforma previdenciária aprovada em primeiro turno na Câmara não é mero ajuste, mas a mudança estrutural das relações trabalhistas no país. Apenas para ficar em um de seus pontos. Enquanto a idade mínima para homens aposentarem passou para 65 anos, estados como Maranhão, Piauí e Alagoas têm expectativa de vida masculina em torno de 67 anos.

Nos bairros pobres da cidade de São Paulo, como Cidade Tiradentes, Jardim Ângela, Anhanguera, Grajaú, Iguatemi a expectativa de vida varia de 54 a 57 anos. Na verdade, 36 dos 96 distritos paulistanos têm expectativa de vida abaixo de 65 anos. Ou seja, essas pessoas simplesmente não irão se aposentar mais. Elas estão condenadas a parar de trabalhar apenas no momento em que se aprontarem para a morte.

Mas a reforma passou, em seu primeiro embate, com um silêncio tumular vindo da oposição. É em relação a isto que devemos estar realmente preocupados. No momento em que foi necessário um processo comum (já que todos serão, de alguma forma, afetados), não havia nada capaz de produzi-lo. Onde estávamos e o que realmente nos mobiliza neste momento? Todos deveriam fazer uma autocrítica honesta, não apenas partidos e sindicatos, mas todos, isto se não quisermos ser tragados por movimentos desta natureza mais uma vez. Enquanto a capacidade de produção de força comum estiver fora de nosso alcance, continuaremos a perder.

Isto pode parecer com mais um chamado em nome da “unidade”. Mas valeria a pena precisar melhor esse ponto. Por mais paradoxal que isto possa parecer, talvez precisemos agora de divisão para unir, e não de união. É claro que essa operação parece um contrassenso para os que acham que a política anda na mesma via dos sinais matemáticos. Mas, a despeito de seu estranhamento, ela faz todo sentido.

Há certas situações nas quais é necessário dividir para crescer. A oposição brasileira até agora sonhou com uma união em cima do nada. Ela não definiu as rupturas que quer tomar para si, o horizonte de suas novas lutas. Tentará ela ser, mais uma vez, o “good cop” do capitalismo brasileiro ou estará enfim disposta a vocalizar rupturas até agora não tentadas? Será ela o arauto do retorno a uma democracia que nunca existiu entre nós ou assumirá enfim o desafio de romper e criar o que até agora não existiu? Pregará ela o evangelho da “integração para todos” e do respeito a uma emancipação de indivíduos proprietários ou estará disposta a ser a força de desintegração que nos levará para fora do universo de propriedades? Essas divisões podem criar novas alianças. Por isto, elas podem nos fazer crescer.


por Vladimir Safatle, Filósofo, é professor de Teoria das Ciências Humanas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP)   |   Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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