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Terça-feira, Julho 16, 2024

Não nasci para ninguém

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Sabes mãe, não havia nunca ter nascido. Sim, e como as memórias viajam de trás para a frente e frente para trás.

Lembro-me ainda daquele túmulo cinzento, até da cor me lembro, com a minha fotografia à cabeceira.  Risos sei lá entre as lágrimas dos deuses que fugiam das nuvens que o momento inventava, sorria eu descansado naquela lapela de velas desaparecidas de um defunto qualquer, sei lá quem, presságios alimentados na caverna onde havia séculos vivido.

“não nasci para ninguém”

Um subscrito com letras éforas, uma mistura de rosas e cânforas que dilaceravam a nostalgia daquele Dezembro por descobrir enquanto badalavam árvores no quintal mais próximo de todos os tédios.

Datas nem sequer e que importavam as datas, isso regista quase nada para existirmos, acredita, a minha mãe ainda na sala de barriga mordaz conferia roupas de cores encantadoras para receber um dia qualquer o sonho dos desfeitos nas paredes mais antiga que havia assim alguém imaginado. Nem na bíblia consta, dizem os estudiosos desse monumental livro de capítulos infinitos, sim, queria talvez sorrir, mas morto já não conseguia.

Verdade,
“não nasci para ninguém”

Esse encanto e que desencanto, quem sabe e que importa agora, soletro devagar rimas desfasadas para encantar o auditório naquele cemitério onde não existia corpo nenhum enterrado.

Sabes mãe, as éforas não são cânforas. Os ermos disfarçam e a gente continua ali enquanto ainda houver vento, sei pelas árvores que doseavam a madrugada a cada badalada e meu pai nos fundos daquela ribeira a caminho de Caxito tentando desenterrar um arbusto saltitante e como tremiam, disseram-me depois os flanges que com ele seguiam, uma caravana de sombras para cantigas desse tempo e a que tempo foi, conseguiria se ainda vivesse para te confessar que o amor matou a distância e o silêncio como em gelo o prazer do abraço. Ficávamos todos secos se tivéssemos sobrevivido.

A neve de nevoeiro cobria o distante para que a caminhada não progredisse, ficaram ali parados, uns encostados ao vento e outros nem a pensamentos, tal era a dor nos calços velho do jeep que conduzias tantas vezes.

As éforas ainda contavam-me de ti.

Ao lado do túmulo a foto do rapaz sem futuro, robusto e seco, mais parecia o eremita inventado na igreja a sul de Nova Lisboa, a terra vermelha encalacra-se nos sapatos e como dificultava a caminhada e ainda por cima chovia!

Uivos não muito longe.

Perto a foto apenas, ao lado do túmulo do desconhecido, creio, e na sua mesinha de cabeceira eu ainda sem barba nem raiva.

Descobria entretanto ali que

“não nasci para ninguém”

eram apenas pétalas de cárceres encobertos na palha de tantos anos perdidos.

Os eucaliptos perfumavam os sons da minha tão desejada solidão.


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