… uma leitura (encantada).
Ler Ana Margarida de Carvalho é um acto de enorme prazer e encanto, de fascínio e de inquietação. Essa experiência, profunda experiência estética, que já decorria da primeira obra “Que importa a fúria do mar”, repetiu-se e desenvolveu-se agora, com a leitura de “Não se pode morar nos olhos de um gato”.
Estamos no século XIX, algures junto à costa do Brasil, num navio negreiro. Mas estamos em qualquer outro lugar e tempo. Estamos no Mediterrâneo, entre ondas agitadas, numa frágil embarcação, no século XXI.
Esta obra, “romance poderoso” como lhe têm chamado, é um retrato deslumbrado da condição humana mas é, ao mesmo tempo, todo o deslumbramento que os olhos de uma criança, acabada de vir ao mundo, pode conter. É a curiosidade de qualquer início (o início é sempre uma promessa, como diria Hannah Arendt) mas também a mistura de toda a bondade e de toda a maldade que irão lutar entre si, num conflito cujo fim não se avista. É terra longínqua demais.
Como contraponto da violência e da maldade que cada um dos náufragos carrega em si, das suas histórias difíceis, das suas experiências da crueldade, somos colocados perante os passos incertos e titubeantes do “pretinho” que na areia breve da praia aprende a sorrir e a mover-se no mundo e perante o acto único e maravilhoso da criança que nasce na praia/porto de abrigo, carregando, com esse nascimento toda a esperança de um horizonte.
É a nossa condição, de náufragos, sobreviventes, de diáspora e de encontro de mundividências e de trajectos, que nesta obra se narra. Nos finais do século XIX um navio negreiro naufraga e apenas alguns sobreviventes: uma fidalga e a sua filha, um escravo, um padre, um criado, um capataz, irão, na sua clausura, lutar contra a morte. Sabendo que ela já aconteceu muitas vezes. Nessa praia onde se acolhem, encurralados entre um mar amigo/inimigo e uma terra inacessível, o seu encontro é o confronto da diversidade. E cada um, para sobreviver, tem que aprender a olhar o outro. A interculturalidade corre nas veias de todos os seres humanos. Não vale a pena reclamar “territórios”, “propriedades”, “exclusividades grupais”, menos ainda “superioridades”.
Omnipresente, uma outra personagem, a santa de pau, com “cabelos de índia”, Nossa Senhora das Angústias, a que ouve todas as histórias, os relatos dos remorsos e de todas as memórias que, naquela praia se entrelaçam com um novo olhar de cada um sobre o outro e sobre si próprio.
Para além dos amores e ódios, da violência e da generosidade, Ana Margarida de Carvalho apresenta-nos a nossa condição, colocando-nos perante os nossos limites. Neste aspecto, como já na sua obra anterior, o mar é uma figura central. Com ele, através dele nos medimos. A nossa força mede-se pela dele, o nosso ritmo pelo das marés e dos seus caprichos.
Se, pelo seu conteúdo, se trata de uma obra enorme sobre a condição humana, não o é menos pela forma como o faz. Há um modo de dizer e de narrar que nos enche todos os sentidos e que, por dentro, nos vai percorrendo como rio, a deleitar-nos. As palavras e a mestria com que são usadas, as descrições e as metáforas, todo o “jogo de linguagem” fazem destas 350 páginas impressas um monumento da língua portuguesa. A criatividade e a invenção conduzem-nos para outro mundo: o do puro prazer estético.
Estamos numa praia, tentando a salvação. Somos náufragos. Escravos. Somos refugiados. Estamos/somos no lugar da História e da Memória.
Mas estamos felizes porque há pessoas que assim nos (des)escrevem!
Não se pode morar nos olhos de um gato, Ana Margarida de Carvalho, Teorema, 2016, 352 pp