Sempre fui o tipo de pessoa que aponta o “elefante” na sala. A maioria à minha volta, no entanto, circunda o elefante fingindo que ele não existe. Tardiamente descubro que essas pessoas são as sobreviventes de um mundo eternamente decadente.
A decadência do mundo tem certa elegância em tempos de paz, quando a crise, melhor dizendo “o elefante”, mata de fome apenas os pobres. Os pobres também morrem violentamente esmagados pelas quatro patas do animal. Briguei muito com esse ser enigmático, finalmente fui devorada.
O capitalismo não vai acabar, não nessa minha encarnação: na noite passada (1 de março) eu assisti muito desenho animado com os meninos (um tem 4 anos, o outro, 3) e constatei que o intervalo comercial — cada vez mais longo e eficiente como nos melhores tempos de novela na Globo — transita por caminhos com os quais nem sonhavam minhas vãs filosofias de avó. E ex- publicitária, além de jornalista, escritora e copeira.
A criança em formação não tem muita defesa para o apelo ao consumo e à competição a não ser a realidade harmoniosa, ou não, em que viva. Em tempos de crise material e ética generalizada, a harmonia, lamento, mudou-se para outro planeta (talvez um dos sete recém-descobertos pela Nasa).
No lugar de harmonia pode-se usar também a palavra (o conceito) “coerência”… Está difícil soar coerentemente dentro — nos pensamentos — ou fora de nós, nas narrativas…
De volta aos meninos, com eles recuperei a infância perdida em documentos úteis do Google. Fiz uma busca, quero compartilhar.
Façamos de conta que eu sou criança de novo. No final dos anos 1960, eu me vejo de mãos dadas com meus pais chegando, talvez, à sétima edição do “Salão da Criança” na Bienal do Ibirapuera. Quem levou quem ao evento, não se sabe, mas a publicidade que inaugurou o evento (1961), tinha o slogan “traga o papaizinho, puxe pela mão”.
Não sei ler ainda, mas identifico logo à entrada a marca Kibon, penso que se trata de sorvete. Fico eufórica.
Passa o tempo. Quando o evento chega a outubro de 1970, a publicidade torna-se institucional. Apropria-se do slogan da ditadura e propõe: “criança, ame-a e deixe-a ir” ao Salão.
Como já informei, em 1970, eu era criança, não lutava contra nem defendia a ditadura. O que me encantou — porque assisti na televisão durante férias escolares — foi a conquista da lua, em 1969.
Não posso deixar de comparar a minha infância com o momento atual, não só porque estamos a ponto de oficializar o fato de que existe vida extraterrestre (certamente a Nasa vai nos comunicar em um dia de festa ou pânico), mas porque estamos retrocedendo rapidamente e talvez a televisão, um aparelho moderno que nem todos possuíam quando o primeiro passo do homem na lua foi televisionado, deixe de fazer parte da vida dos terráqueos.
Em São Paulo, o sinal analógico será cortado no final desse mês de março e a periferia tem direito a apenas 1,8 milhão de kits grátis para conversão do sinal. De outro modo, toda televisão com tubo se apagará.
Sim, se você está me lendo e acompanhando sabe que a mídia é convergente, pode-se ver TV no pequeno aparelho celular. Só que nem todos (o Brasil tem 70 milhões de pessoas offline) têm smartphone e, principalmente, a maioria, em curto espaço de tempo, pode não ter dinheiro para pagar o serviço.
Nem mencionarei cortes de energia elétrica ou esgotamento de recursos naturais porque não vêm ao caso.
Se a inclusão social, a meu ver, não passa necessariamente pelo digital (pode-se sobreviver no meio rural, trocando produtos e informação), por outro lado há que se reconhecer o monumental processo de “desinclusão” que estamos vivendo (talvez de volta a um “Zé Brasil”, personagem de Monteiro Lobato).
Esse processo, para definir melhor e retomar o começo do meu texto, é o “elefante” na sala. Não sei descrever o elefante, mas sei que ele não é mulher, nem refugiado, nem homossexual, nem classe média, nem etc. e nem “elite”, essa palavra escorregadia usada com tanta desfaçatez pela imprensa alternativa.
Muitos dos nossos mais respeitados formadores de opinião, ao longo da história, nasceram na elite intelectual ou econômica. É o caso de Friedrich Engels, grande parceiro de Karl Marx, para citar apenas um.
Não sei qual é o caminho para a reinclusão da população que nunca foi incluída, sei que ele não é maniqueísta. Não pode conter ódio de espécie ou gradação alguma. Nem preconceito.
Não pertence a uma religião, muito menos a um partido político: recomendo veementemente que todos leiam ou releiam o primeiro capítulo de “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Marquez.
Macondo é aqui e sempre foi aqui. Na guerra, tanto faz lutar pelo “grande partido” ou por uma arrogância da qual se esqueça. A luta é contra a guerra, tenho certeza.
Aliás, o primeiro protagonista do livro de García Marquez (é uma centenária saga familiar) dá a deixa: “não podemos perder o senso de orientação” quando nos embrenhamos no desconhecido. A bússola, inferência minha, é poética, porque poesia “salva” — como todas formas de arte — e é também “compromisso”, dizem o Rap e o Hip-Hop.
Só podemos tomar parte, ou partido, na força de resistência (“bom dia, Vietnã”, para quem ainda não acordou; estamos em guerra), sabendo que hoje ela agrega adeptos da direita e da esquerda. Como também no passado, quando a democracia reunia positivistas e comunistas.
Ah, não quero voltar a essa página, cada um que busque o começo dessa história nascida com gosto de fim de mundo. Ela entrou por uma porta, saiu por outra…
A autora escreve em português do Brasil