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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Natal quarenta anos depois

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Se as modernas técnicas de investigação científica são capazes de determinar o que se comia há milhares de anos, também serão certamente capazes de nos explicar o que se passou em Camarate há quarenta anos.

Quando há dois anos escrevi aqui no Tornado sobre o desaparecimento do Natal, não podia imaginar como o processo se ia acelerar e como é literalmente na clandestinidade que muitos de nós vão celebrar a ceia natalícia este ano.





Portugal, que conta a seu favor no panorama internacional com um dos mais baixos níveis de conflitualidade do mundo, conheceu há quarenta anos um episódio que continua ainda hoje a dividir o país. Um dos argumentos que foi ouvido na altura para a forma precipitada como se declarou a tese de ‘acidente’, se ignorou tudo o que a pudesse contrariar e não se procedeu a uma investigação à altura da importância do acontecimento, foi exactamente essa: era necessário dizer isso para evitar um confronto político grave no país.

E se quarenta anos depois creio que ninguém seriamente considerará esse argumento como tendo mantido a sua validade, se, como vimos a semana passada, a tese da prescrição fatal não tem sustentação na prática comparada das democracias ocidentais, há ainda a considerar a questão sob o ângulo da disputa político-partidária.

Tendo sido militante partidário grande parte da minha vida – só apresentei a minha demissão ao então secretário-geral do PS em 2014, depois de constatar a sua incapacidade para se libertar da sombra destruidora de Ana Gomes – olho para a forma como a generalidade das pessoas continua a viver o fenómeno partidário com alguma perplexidade.





Saber se o primeiro-ministro português, tal como alguns anos mais tarde o seu homólogo sueco, foi assassinado ao tentar impedir a exportação de armas para o Irão, deveria relevar do maior interesse público e motivar naturalmente a generalidade dos portugueses de bem, que nada teve a ver com esse negócio, independentemente das suas orientações políticas e partidárias.

Entre nós, contudo, cultiva-se a ideia de que essa questão deve ser equacionada em função de agendas e que seria a direita portuguesa que estaria interessada em reavivar a questão, citando-se em abono dessa tese a composição e a iniciativa das comissões de inquérito a Camarate.

Acontece que uma das principais iniciativas de inquérito ao tema foi, precisamente, dos comunistas portugueses no quadro Inquérito parlamentar n.°6/IV à actuação das entidades portuguesas intervenientes na venda de armas e desvio de fundos e material de guerra, inquérito que a dissolução da Assembleia da República que se lhe seguiu viria a abortar.

É claro que toda a atenção da iniciativa está mais virada para as responsabilidades do ‘imperialismo norte-americano’ e dos vários intermediários no negócio do que para os Guardas Islâmicos e seus agentes. Os principais interessados, a vasta cadeia de actores empresariais e político-partidários que prosperaram à custa do negócio de armas no nosso país, só são mencionados na medida em que a sua implicação possa ser vista como colaboração com os EUA.

Para além da conhecida lógica político-partidária dos comunistas portugueses – que é na verdade mais geopolítica do que ideológica – há nesta matéria naturalmente uma explosão de desinformação de todos os quadrantes que procuram manipular os factos para defender aquilo que lhes é mais conveniente.

E se colocarmos de lado as lógicas de desinformação mais óbvias – como as turcas a implicar o Partido dos Trabalhadores do Curdistão no caso sueco – há as mais sofisticadas, que são as de introduzir na história elementos de tal forma fantasiosos para que toda ela apareça como fruto de imaginação conspiratória e seja por isso liminarmente rejeitada, ou ainda as de fazer imenso barulho sobre o tema realçando tudo o que é secundário para que o essencial não seja visto.

O principal problema com que estamos confrontados aqui como noutras matérias é o perder de vista da revolução cartesiana e o voltar à lógica dicotómica que a precedeu, perdendo-se a capacidade de pensar.

E depois, claro, temos a falta de entendimento do mundo que nos rodeia, e que leva muita gente bem-intencionada a acreditar no que não tem qualquer sentido e a ser vítima dessas estratégias de desinformação que só prosperam com a falta de conhecimento e discernimento das suas vítimas.

Se as modernas técnicas de investigação científica são capazes de determinar o que se comia há milhares de anos, também serão certamente capazes de nos explicar o que se passou em Camarate há quarenta anos.

Ninguém tem de se divorciar das suas convicções e pontos de vista para pensar, mas convém naturalmente manter as distâncias entre fé e raciocínio. Para que a reabertura do processo de Camarate venha a ser uma realidade é fundamental que cada um olhe para o assunto de forma racional e informada e sem uma agenda prévia.

Será possível então chegar a consensos e trabalhar para apresentar às entidades judiciais um dossier suficientemente articulado, expurgado de fantasias, para que estas venham a decidir a reabertura do processo, e talvez possamos encarar então a possibilidade de nos reconciliarmos com a verdade.

Pela minha parte, contem comigo. Não há rigorosamente nada nem ninguém neste mundo que me levem a fechar os olhos sobre a responsabilidade ou conivência na perpetração de um crime desta dimensão, mas não estou naturalmente disponível para alimentar fantasias que só levam ao descrédito do entendimento do que realmente aconteceu.

Até lá, os meus votos de feliz Natal a todos, que possam estar com quem mais amam no mundo e que consigam resistir às duras provações que enfrentamos.


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