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Sábado, Novembro 2, 2024

Negócio inconstitucional nos Açores!

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A que título teria resolvido o PSD confidenciar o seu projecto de revisão constitucional ao Chega que escondeu de todos nós? E a que título o teria feito no âmbito da discussão sobre o acordo a ser celebrado na Assembleia Legislativa Regional dos Açores?

  1. A violação da Constituição da República Portuguesa

O líder do PSD dos Açores foi indigitado pelo Representante da República para formar o governo regional. Como disse aqui na semana passada, tratava-se de um resultado esperado e que não creio ofenda, por si mesmo, nem a letra nem o espírito da Constituição.

Convém termos em conta nesta matéria que não se trata sequer do precedente nacional, porque já houve um tentado precedente açoriano que não foi avante por razões que nada tiveram a ver com princípios, como convém termos em conta que no passado o General Ramalho Eanes interpretou o clausulado de ‘ter em conta os resultados eleitorais’ de forma a nomear para Primeiro-ministro quem ele escolheu, à revelia do parlamento.





Mais ainda, tão pouco acho que Pedro Catarino deveria ter imitado o absurdo gesto de Cavaco Silva indigitando alguém que tinha sido explicitamente rejeitado por uma maioria parlamentar.

Repito aqui que o PS-Açores se deveria abster de fazer as tristes figuras protagonizadas por Pedro Passos Coelho que sempre se portou como alguém que não entendeu que perdeu as eleições. Quanto mais depressa se consciencializar do facto, melhor.

Posto isto, há regras a respeitar, e a negociação pública do acordo pelos líderes nacionais do Chega e do PSD ultrapassou a barreira daquilo que a Constituição permite.

De acordo com o número 2 do artigo 111 da Constituição da República Portuguesa, artigo que tem por título ‘Separação e interdependência’ ‘Nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei’.

No entanto, em flagrante violação do que aqui se estabelece, as direcções nacionais dos partidos políticos da direita chamaram a si a competência da Assembleia Legislativa Regional dos Açores em matéria de formação do executivo regional, negociando elas mesmas, em função de matéria de âmbito nacional – e no caso, a mais sagrada de todas as matérias, que é a matéria constitucional – o que deverá vir a ser a aprovação de um Governo Regional pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores.

Que a negociação teve lugar e que foram estas as condições do acordo é matéria que foi publicamente divulgada pelo líder do Chega e que não foi desmentida pelo líder do PSD. O que este fez foi, reagindo ao pedido de prestação de contas apresentado pelo PS afirmar que o PS mentia – quando neste particular, o porta-voz socialista se limitou a referir a informação publicamente divulgada pelo líder do Chega.

Pior ainda, o líder do PSD resolveu faltar ao respeito das instituições e de todos nós com mentiras infantis: que não teria feito acordo, mas teria apenas revelado ao líder do Chega o seu projecto de revisão constitucional que, feliz coincidência, preenchia as aspirações do Chega. A que título teria resolvido o PSD confidenciar o seu projecto de revisão constitucional ao Chega que escondeu de todos nós? E a que título o teria feito no âmbito da discussão sobre o acordo a ser celebrado na Assembleia Legislativa Regional dos Açores?

Se o que o líder do Chega declarou não era verdade, obviamente deveria o líder do PSD desmenti-lo de forma clara e inequívoca. Mais, como notoriamente o acordo existe – ele está na base da indigitação do PSD para formar governo – ele teria de ser divulgado, dissipando as suspeitas fundadas sobre a sua constitucionalidade. Nada disto aconteceu, o que só pode significar que o líder do PSD mentiu e que tem um acordo com o Chega em matéria constitucional nacional para assegurar a conquista do Governo Regional dos Açores.

E isso é uma violação inconstitucional do mais basilar princípio da Autonomia Constitucional da Região Autónoma dos Açores!

Mas não se trata apenas de uma questão que diga respeito aos Açores, sendo antes algo de essencial para todo o país. A negociação nacional de lugares num Governo Regional contra medidas de revisão constitucional constitui um precedente com consequências potencialmente devastadoras.

O que impedirá amanhã os mesmos partidos políticos de negociar câmaras municipais – e no limite, todo e qualquer cargo municipal, regional ou nacional – contra a alteração de princípios constitucionais?

O líder do PSD já tinha esclarecido que não tinha qualquer problema com o incumprimento de princípios constitucionais de direitos, liberdades e garantias por propostas promovidas pelo Governo em nome da pandemia. Com este passo, ele mostra que a Constituição é apenas instrumental para todo e qualquer negócio político.

A geringonça de direita passou de um mero negócio de governo a um negócio inconstitucional que hipoteca todo o país!

E é isto que eu penso que o Representante da República para os Açores não poderia ignorar e não deveria aceitar.

  1. Separação de poderes

O Representante da República dos Açores – e não já Ministro da República para os Açores – deveria ser uma figura fundamental na arquitectura política regional. No entanto, ao longo de décadas essa figura foi combatida e ostracizada pelas elites políticas regionais com o argumento de que era ‘centralista’ ou mesmo ‘colonialista’.

Nesta concepção pseudoautonomia, o Canadá ou a Austrália deveriam ser vistas como realidades políticas que sofrem o jugo colonial britânico. É verdade que existem movimentos republicanos muito fortes em qualquer desses países e que seria possível pensar na substituição desse Ministro por um Presidente eleito, directa ou indirectamente, numa modificação constitucional importante.

O que parece ninguém ter entendido é que a menorização de uma figura independente encarregada de zelar pela observação de princípios constitucionais numa região que apenas dispõe de um poder regional saído de eleições regionais parlamentares é absolutamente contrária ao princípio da separação de poderes que é a base doutrinária do liberalismo tal como o conhecemos no Ocidente.

O líder açoriano da ‘Iniciativa Liberal’, que se revelou, depois do Chega, o mais importante elemento desta geringonça açoriana, começou por declarar que ‘nunca aceitaria um governo fabricado em Lisboa’ uma escassa semana antes de fazer exactamente isso, aceitar um governo fabricado em Lisboa.

O que ele parece não ter entendido é que com isso, mais do que fazer uma cambalhota política, violou princípios sagrados da separação de poderes.

Foi também ele que disse que não aceitaria fazer um acordo político sem princípios programáticos, porque isso se iria traduzir apenas na substituição das pessoas da administração com um cartão partidário por pessoas com outro cartão partidário sem que houvesse lugar a qualquer mudança política, numa avaliação exacta do que está em causa. Mas foi também ele que anunciou publicamente depois do encontro com o Representante da República que estaria pronto a assinar um acordo mesmo antes de haver princípios programáticos, num volte face total de compromissos em apenas alguns dias.

  1. Separar o trigo do joio

A principal contestação à nova geringonça de direita indigitada para os Açores não deve evidentemente ser feita na base de princípios constitucionais que pouco dizem ao sentir das pessoas nem tão pouco em bloco a matérias como a exagerada dimensão da máquina política regional ou de ultrapassar a subsidiodependência, porque se trata de problemas reais que não são invenções de direita.

O problema no que respeita à máquina política é um problema geral em que a separação de poderes é essencial para conter a tendência clientelar das democracias. Nesta matéria, como muito bem observou o deputado da Iniciativa Liberal antes de se converter a incondicional do acordo, é que a direita não vai promover nenhuma reforma, mas tratar de dar às suas clientelas os lugares necessários para poder enquistar-se no poder.

Na segunda questão, que é a da subsidiodependência, é claro que a direita só olha para as pequenas contribuições dadas aos mais desmunidos, nomeadamente o rendimento social de inserção.

Estes mecanismos de apoio ao rendimento são essenciais e a sua defesa tem de estar no coração da alternativa de esquerda à geringonça. Posto isto, é verdade que o apoio ao rendimento tem de ser complementado com acções estruturais na formação, educação, saúde que visem combater a pobreza, sem o que se tornam formas de perpetuação da pobreza.

Mais importante do que isso é ter em conta que a subsidiodependência nos Açores tem pouco a ver com medidas de apoio ao rendimento mas antes com a actividade económica em geral, e que é aqui que são necessárias reformas mais profundas que certamente não estão no horizonte da coligação de direita.

Esta geringonça de direita é uma oportunidade para o PS-Açores deixar para trás o perfil de partido de aparelho de Estado para se reinventar como partido de causas. Pela minha parte, os melhores votos de sucesso para esse desafio.


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