Sim, ninguém defende a eutanásia, porque ninguém deseja a morte. O eros (a pulsão da vida) em condições normais sobreleva o thanatos (a pulsão da morte). De outro modo, estaria em risco a sobrevivência do género humano. Quem defende o direito à eutanásia não poderá, sob pena de má-fé, ser acusado de ser apologista da morte. Trata-se, pois, de um caso excepcional, assumido em circunstâncias excepcionais. E como tal deve ser entendido.
- Usando a dicotomia como método de raciocínio, podemos dizer que sobre esta questão há duas posições extremas. A religiosa, que considera a vida um dom divino que transcende a esfera da vontade humana e que, por isso, não concede ao crente liberdade de dispor da sua própria vida e de agir radicalmente sobre essa dádiva; a construtivista, que considera que a vontade humana é soberana e pode, por isso, sobrepor-se aos condicionalismos ditados pela sociedade, pela história e pela natureza. É lógica e coerente a primeira posição e, por isso, respeito-a. Já quanto à segunda, embora reconheça que muitas conquistas civilizacionais se devem a ela, em muitos casos acaba numa problemática e incerta engenharia social.
- Não entro em questões jurídicas, porque num assunto destes o que interessa é a posição de fundo que se assume. Mas interrogo-me se ao Estado cabe produzir uma norma que proíba um cidadão de, em determinadas condições, decidir livremente de pôr termo à vida. Interrogo-me se o Estado pode e deve criminalizar, por exemplo, e seguindo a inspiração da Igreja católica, o suicídio. Quem se suicida contraria o carácter inviolável da vida e por isso deverá ser condenado? No além, sim, certamente! Mas, no aquém, depois de morto? E quem não consegue suicidar-se com eficácia deverá ser condenado por ter atentado contra a sua própria vida? Pondo-o na prisão? Parecem raciocínios humorísticos, mas não são, porque vão ao fundo do problema.
- A questão põe-se, todavia, quando alguém é chamado a cooperar, por competência técnica e formal (um médico), na livre decisão, devidamente enquadrada (aqui, sim, pelo Estado, enquanto regulador), de um cidadão pôr termo à própria vida. Se aceitar, esse médico deverá ser acusado por ter cometido assassínio? E se outro se opuser deverá ser acusado por se ter recusado a pôr fim ao sofrimento atroz de um ser humano, a pedido, consciente e fundamentado, dele? No meu entendimento, nem num caso nem no outro deverá haver acusação.
- Do que se trata, no caso da Eutanásia, é de clarificar a situação, definindo a posição do Estado relativamente a esta matéria.
- Não devem os católicos, por exemplo, pedir ao Estado que produza norma, activamente ou por omissão (ficando a eutanásia tipificada como assassínio), já que os verdadeiros católicos nunca praticarão a eutanásia, por óbvias razões de doutrina e de visão do mundo, não sendo, pois, a comunidade de fiéis afectada pela posição reguladora (que referirei) que um Estado venha a assumir. Mas será aceitável que queiram impor, através do Estado, a toda a sociedade a sua própria visão do mundo e da vida? Não deve o Estado democrático, pelo contrário, ser o garante da livre afirmação de identidades, em todos os planos, político, cultural ou religioso, desde que enquadradas pelo que Habermas designa por “patriotismo constitucional”? Do que aqui se trata é de uma laicidade da abstenção do Estado para uma livre dialéctica de identidades!
- De resto, nem o Estado, numa civilização de matriz liberal, deve intervir numa matéria tão íntima e pessoal como esta, a não ser para proteger precisamente a liberdade de cada um tutelar a própria integridade como entender. Ou seja, o Estado tem o dever de intervir, sim, mas para proteger a liberdade individual da interferência de factores externos à sua livre, racional e ponderada decisão relativamente à própria vida.
- Considero, deste modo, que a intervenção do Estado em relação a esta matéria deve somente ser reguladora, garantir o direito de cada um tutelar a sua vida ou a sua morte. Alguns Estados, como é sabido, e em alguns países democráticos e civilizacionalmente avançados, usam a pena de morte. Mas lembro o art. 2.º dessa fabulosa “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789: “O fim de qualquer associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Este artigo, conjugado com art. 5.º (“a lei não tem o direito de proibir a não ser as acções prejudiciais para a sociedade; tudo o que não é proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser obrigado a fazer o que a lei não ordena”), leva-me a concluir que, nesta matéria, o Estado somente deverá remover o que possa prejudicar, por um lado, a sociedade e, por outro, a livre tutela do cidadão sobre si próprio, clarificando as condições em que a morte assistida possa ser praticada.
- Assim, no caso em que um cidadão esteja na posse plena das suas próprias faculdades, mas em condições de insuportabilidade física (mesmo com cuidados paliativos) e de destino irreversível, o Estado tem a obrigação, isso sim, de certificar institucionalmente estas condições, seja do ponto de vista psicológico seja do ponto de vista médico, perante o recurso a assistência médica. A verificar-se que não existem factores exógenos a determinar a decisão, o Estado não deve, nem que seja por omissão, permitir que quem intervenha no processo, a pedido do cidadão em causa, e exclusivamente porque é detentor formal de competência técnica, seja acusado de assassínio. Tal como não deve permitir que quem se recuse, por razões de ética da convicção ou religiosas, sendo detentor formal de competência técnica, a cooperar no acto de eutanásia, seja acusado.
- Tratando-se de alguém que comprovadamente esteja numa situação de sofrimento atroz, mas incapaz intelectualmente de tutelar a sua própria vida, estando, assim, dependente de outra tutela (por exemplo, familiar), o Estado tem o dever, perante uma decisão desta natureza, de reforçar a tutela dos direitos do cidadão em causa, accionando idóneos meios institucionais de controlo para verificar que não há factores exógenos àquela que seria, supostamente, a sua vontade em condições de plena posse das suas faculdades.
- A clarificação em causa deverá, no meu modesto entendimento, confinar-se à certificação de que na decisão não intervêm quaisquer factores externos. E nada mais, sob pena de, em qualquer dos casos acima referidos, o Estado estar a entrar na zona protegida de um direito individual inalienável, o da livre tutela da própria vida. Ou seja, defendo sobre esta matéria uma intervenção minimalista, mas reguladora e de controlo do Estado, deixando aos cidadãos a liberdade de accionarem, ou não, os mecanismos para poderem usufruir de uma morte assistida. O que não é admissível é pedir ao Estado que, em nome de uma mundividência, seja ela religiosa ou filosófica, anule a liberdade individual naquela que é a mais profunda e íntima esfera da própria personalidade. A eutanásia não pode ser tipificada como assassínio, porque não o é, e muito menos numa sociedade de matriz liberal onde a tutela da liberdade é um dos mais importantes princípios. E nesta visão da liberdade entram de pleno direito os católicos e a sua legítima discordância relativamente a posições diferentes da sua.