Trajetórias Poéticas entre Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen: Da gênesis da criação à poesia como salvação no espaço e no tempo – uma análise do Percurso e do caminho comuns
Viagem também é o nome do primeiro grande livro de Cecília Meireles, premiado pela Academia Brasileira de Letras e o definidor de sua linha poética. Neste livro, as poesias de Cecília Meireles se intitulam tais como; “Anunciação, Excursão, Terra, Renúncia, Corpo no Mar, Diálogo, Praia, Encontro e Origem”, nomes que de alguma forma dialogam, ora repetindo, ora aparecendo como tema em Contos Exemplares de Sophia e sua busca pelo Paraíso Perdido e pela unificação do corpo com a natureza. Na verdade, o diálogo é mútuo, embora seja Cecília a antecessora e seu livro Viagem anterior à obra de Andresen. À primeira vista, os nomes destes poemas e dos contos já mostram por si essa confluência permanente e constante, mas a leitura dos mesmos garante a diferenciação entre uma autora e outra.
Cecília Meireles e Sophia de Mello nutrem em seus poemas a mesma consternação; as palavras como puro estado das coisas. Sophia pela imanência e Cecília pela transcendência. Assim, cada poema se torna em si mesmo, uma imagem. Elas partilham símbolos comuns tais como: o mar, o jardim, a casa, o lago, a praia, o vento, as flores, o tempo, as árvores. Porém, existem algumas diferenças no trato aos mesmos. Enquanto Sophia busca com esses símbolos o retorno ao Paraíso Perdido, Cecília parece anunciar de alguma forma o Apocalipse. Uma busca a perfeição das formas, a palavra inicial e primeva, enquanto a outra se aquiesce com o pranto e a finitude do ser e do mundo.
Interessante observar que em Cecília preferiu o nome viagem sem o artigo a, isto é, sem nenhum determinismo ou demonstrativo, sem o peso de saber qual seria a viagem tratada. Enquanto Sophia já o denominou de “A Viagem”. “Viagem” sem o artigo permite múltiplas interpretações e interações do leitor com a palavra porque não a especifica e não a restringe, ao contrário, a deixa em aberto como um sonoro convite às divagações e devaneios de quem abre o livro, como se neste momento, fosse iniciado não apenas uma viagem, mas várias através da narrativa e da poesia. “A Viagem” com o artigo a, o conto de Sophia de Mello, demonstra qual a viagem que será feita. Ela será especifica e única para uma direção e um lugar por todo conto buscado; o paraíso perdido com o seu grande jardim de pureza e beleza ou a casa original de todo ser – lugares onde reinaria a perfeição.
Todos os elementos analisados e presentes em Contos Exemplares, como também em toda obra de Sophia: a casa, o mar, o jardim e a terra são também símbolos e figuras constantes na obra de Cecília Meireles como um todo. Neste sentido, os dois livros aqui citados da poeta carioca não deixarão de apresentá-los. Contudo, o que se enxerga em O Romanceiro da Inconfidência, é que este livro filiará sua parte histórica com o mais puro lirismo ceciliano na busca de sua atmosfera mítica. Enquanto, a poética de Sophia de Mello é igualmente toda tramada em volta dessas figuras de espaço, as quais parecem prender o tempo dentro delas. Por compartilharem dos mesmos símbolos e imagens, a aproximação entre as duas autoras parece ser evidente. Contudo, há algumas diferenças no trato com que elas vão trabalhá-los e redesenhá-los na construção de seus versos.
O mar, por exemplo, revela ser a figura mais ambígua de aproximação entre as duas poetas, talvez por ser o espaço da travessia, do encontro e da solidão, isto é, ele leva e traz, distancia e aproxima, vira caminho e lugar do vazio, do abandono e do heroísmo. Ele esconde o precipício nas profundidades. Por essa razão, se torna um cobertor do desconhecido. Se ele é história, conto em sua superfície, seu interior canta. O discurso epopeico das linhas dos oceanos traz em si mesmo, os vazios que não foram contemplados pelo seu eixo. Estes vazios traçados e ditos são próprios da escrita que aqui eu ecoo de feminina, pois, a epopeia carrega o mito do herói, o masculino. Porém, o canto ignoto de dentro de suas águas submerge uma história de apagamento e silenciamento. E quem se calou, agora quer gritar, embora o murmúrio se misture ao marulho das ondas. Cecília e Sophia evocam os dois mundos do mar: o conto e o canto, a superfície e as profundezas, o horizonte e o infinito, a terra e o abismo, o grito e o murmúrio, a prosa e a poesia: “fixar o presente em torno do silêncio em face da presença das coisas” (MORELATO, 2007 p.80-81).
Entende-se o mar pode ser visto, em alguns momentos, de forma diferente na cultura portuguesa e brasileira, uma diferença percebida e tratada pelas poetas. Para Sophia, o mar representa a própria tradição lusa – o espaço da casa, a extensão do território e a fonte das glórias; “o mar é a fuga para a minha casa” disse o avô de Sophia de Mello. Enquanto para Cecília – o mar é o lugar da ancestralidade perdida e fim de um tempo. Sophia o encara como algo pertencente à tradição de seu povo. Cecília como algo que a leva em busca de um sonho e realidade perdidos. Ambas o vê como elemento essencial do equilíbrio entre a verdade e a justiça, aquela luta pela democracia através de metáforas e ritmos: “Quando a pátria que temos/ não a temos/Perdida por silêncio e por renúncia/ Até a voz do mar se torna exílio/ E a luz que nos rodeia é como grades” (ANDRESEN, 2004 p. 149).
De acordo com Maria Sonilce Ribeiro, (2012, p. 72-73), é notória a importância dos oceanos para a história portuguesa:
O povo português vê o mar como espaço onde o impossível se converte em realidade, um espaço capaz de refletir o ser português, na medida em que é palco da sua História e personagem de histórias, de poesias, de fados e de inúmeras manifestações que estão em repouso, aguardando novas conquistas imaginadas ou reais. […] O Mar Oceano, Mar tenebroso ou simplesmente, Oceano Atlântico, habitava o imaginário do povo português, que via em sua travessia uma verdadeira travessia interior, uma oportunidade de conquista do outro e, por assim dizer do descobrimento de si mesmo. (RIBEIRO, 2012 p.72-73)
O mar é a própria alma de Portugal, um país que não se contentou com a pequena faixa de terra, ou de casa que lhe foi imposto pelos limites geográficos. Ele á possibilidade de expansão ao infinito. Não por acaso, assemelha-se ao abismo pelas profundezas e pelo convite ao desconhecido. Por isso, um escritor português que não fale do mar não estará cantando o seu território, o seu lugar e as suas raízes de ser. Para Andresen, as águas do mar são a porta para o encontro com as tradições líricas portuguesas, falar dele é reverenciar o sagrado das palavras em nossa língua:
O Búzio era como um monumento manuelino, tudo nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram iguais a cabo de navio. O seu corpo parecia um monstro e seu andar dum marinho ou dum barco. Os seus olhos, como o próprio mar, oram eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e às vezes roxos. E trazia sempre na mão direita duas conchas. (ANDRESEN, 2002 p.133)
Neste conto chamado “Homero”, nome do maior poeta grego e um dos maiores da humanidade, Búzio é um personagem que tem nome de um oráculo africano, fala e anda como se fosse um louco, isto é, apresenta uma linguagem desarticulada e não linear igual às ondas do próprio mar. O oráculo ou o nome do personagem vira a ação de uma magia que leva o leitor a um texto rítmico e ritualístico. Seu nome traz a densidade da pedra para as águas, o corpo para a porosidade dos significados.
O corpo do personagem lembra inteiramente o mar e, em cada parte dele, habita uma história, suscitando na poeta a vontade de narrar e descrever de maneira líquida e não linear, ou seja, contar de forma poética, expelir dos poros das palavras e histórias – a poesia e o mito. Por isso, ora os olhos eram cinza, oram verdes ou roxos, mudando a cor conforme o espírito. O mar também recebe a luz do Sol e se transforma em variados tons, enquanto o conto funde como algo em si, a palavra, o corpo e o oceano. Búzio passa a ser um exemplo do que é belo e justo, um modelo de gente e de narrador; o louco, bruxo, poeta.
As águas do mar também são a voz de uma melancolia não mostrada, mas escondida entre suas extensões e seu fundo que no corpo da poeta se expressa no olho, na lágrima, nos versos nas linhas. Quando Sophia escolhe narrar de maneira não linear, sem o formato habitual da narrativa com seu começo, meio e fim, ela desconstrói a ideia de narrativa separada do canto. Suspira intensamente um novo modo de contar característico da Modernidade, para a qual Mallarmé mostrou como a busca pela materialidade musical poderia defini-la como ruptura. Ele próprio associou a escrita da sonoridade à mulher, enquanto Nietzsche fez essa mesma comparação, só que com a vida: “Vita feminina Sim, a vida é uma mulher” (NIETZSCHE, 2001 p.229). Vida, para este filósofo alemão do século XIX, significa aqui abundância, liberdade e sentidos. Somente a escritora, então, poderia romper com a linearidade, o padrão e a parcialidade do discurso e na linguagem.
O que Mallarmé almeja é devolver a palavra ao canto e a magia como era nos primórdios da humanidade e de nossa história. Remete a narrativa aos ancestrais da palavra, onde a poesia não se separava da música, nem o silêncio da solidão. Escrever se torna a base de todo um processo de redescoberta do antigo para o moderno, e nessa luta, o sonho se torna a porta para o desnudamento da realidade. Neste sentido, a poeta do outro lado do mar clama para as linhas corridas de Exemplares ( exemplar vem de lição, ensinamento, padrão) sejam a contra – narração habitual:
Este texto não fala de fatos reais apenas simboliza o espírito criador do homem […] Este texto é um poema e coloca-se por isso às margens do vivido. O poema não se refere àquilo que é, mas sim àquilo que não é […] Num poema não devemos buscar sentido, pois o poema é ele próprio o seu próprio sentido […] Um poema é um tecido compacto e sem falha que apenas fala de si próprio e como um círculo, define o seu próprio espaço e nele nenhuma coisa mais pode habitar. O poema não significa. O poema cria. (ANDERSEN. 2002 p. 159-160).
Cecília Meireles está na outra ponta do Atlântico, exatamente no lugar do outro que fora encontrado, aquele que recebeu do mar o outro sem pedir. Como brasileira, expressa a própria imagem de um paradoxo, principalmente ela, a qual tem suas raízes ancestrais e familiares portuguesas muito bem delineadas. Sua avó era do Açores, ilha perdida ao oeste da costa de Portugal, o que demonstra como a cultura portuguesa não deixa de ser sua fonte materna de inspiração e identidade, já que, a sua avó a criou sozinha desde que ela tinha três anos (Cecília era órfã de pai e mãe). Entretanto, como habitante da praia do lado de cá, a poeta carioca não se exime da responsabilidade de expressar a voz de seu povo e de sua coletividade.
Em Cecília, mar é o sinônimo perfeito para melancolia, metáfora salgada do choro. Sua liquidez escorre o fluir inexorável do tempo e as sugestões sonoras, gráficas e rítmicas entre os murmúrios e o silêncio. Lugar onde a brevidade da vida é totalmente presente, simultâneo com a eternidade de suas linhas, águas e ondas. O efêmero do tempo e da vida é ora diminuído em seu leito, ora aumenta com a aproximação de sua enormidade com o abandono e com a morte. Meireles se compromete como uma poeta que fala do mar entre os limites do adeus e da presença, da dor e da sombra, do abandono e da permanência. O tempo é um vazio em si mesmo que escorre em seus poemas e se despedaça nas rochas primevas como ondas. A poeta necessita cantar o mar exatamente para que não chore e não se lamente. Ele se confunde com o próprio corpo do poema e com a própria teoria da poesia, pois evoca a palavra como destino.
Neste sentido, a poesia passa a ser salvação e destino para as duas, embora de modos diferentes. Cecília enfrenta o tempo como se fosse a própria morte do corpo e da palavra. A incompletude é celebrada, porque para a sua poesia, não há como escapar da pequenez, do fim e da dor. Sophia já transforma tudo em um eterno presente.
Na verdade, há uma busca essencial na poesia de Sophia pela unidade, um grito desconcertante por uma relação vital entre a palavra e a coisa. A figura do Andrógino se torna implícita, um ser mítico grego que representou exatamente a junção entre o masculino e o feminino, a totalidade: “Não quero possuir a terra, mas ser uno com ela” (ANDRESEN, 2004 p.45). Uma busca inteira e invisível pela limpidez, com que ela resgata das palavras; a pureza das imagens.
O jardim e a casa
Não se perdeu nenhuma coisa em mim
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas,
Trago o terror e trago a claridade
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.(ANDRESEN, 2019 s/n)
Texto original em português do Brasil
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