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Terça-feira, Julho 16, 2024

No centenário do nascimento de Sophia – Parte V

Adrienne Savazoni Morelato, de São Paulo
Adrienne Savazoni Morelato, de São Paulo
Mestre e doutora em Estudos Literários pela Unesp, é professora da rede estadual de São Paulo e poeta

Trajetórias Poéticas entre Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen: Da gênesis da criação à poesia como salvação no espaço e no tempo – uma análise do  Percurso e do caminho comuns

Em Cecília, mar é o sinônimo perfeito para melancolia, metáfora salgada do choro. Sua liquidez escorre o fluir inexorável do tempo e as sugestões sonoras, gráficas e rítmicas entre os murmúrios e o silêncio. Lugar onde a brevidade da vida é totalmente presente, simultâneo com a eternidade de suas linhas, águas e ondas. O efêmero do tempo e da vida é ora diminuído em seu leito, ora aumenta com a aproximação de sua enormidade com o abandono e com a morte. Meireles se compromete como uma poeta que fala do mar entre os limites do adeus e da presença, da dor e da sombra, do abandono e da permanência. O tempo é um vazio em si mesmo que escorre em seus poemas e se despedaça nas rochas primevas como ondas. A poeta necessita cantar o mar exatamente para que não chore e não se lamente. Ele se confunde com o próprio corpo do poema e com a própria teoria da poesia, pois evoca a palavra como destino.

Neste sentido, a poesia passa a ser salvação e destino para as duas, embora de modos diferentes. Cecília enfrenta o tempo como se fosse a própria morte do corpo e da palavra. A incompletude é celebrada, porque para a sua poesia, não há como escapar da pequenez, do fim e da dor. Sophia já transforma tudo em um eterno presente.

Na verdade, há uma busca essencial na poesia de Sophia pela unidade, um grito desconcertante por uma relação vital entre a palavra e a coisa. A figura do Andrógino se torna implícita, um ser mítico grego que representou exatamente a junção entre o masculino e o feminino, a totalidade: “Não quero possuir a terra, mas ser uno com ela” (ANDRESEN, 2004 p.45). Uma busca inteira e invisível pela limpidez, com que ela resgata das palavras; a pureza das imagens.

 

O jardim e a casa

Não se perdeu nenhuma coisa em mim
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas,
Trago o terror e trago a claridade
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.

(ANDRESEN, 2019 s/n)

Enquanto, Cecília restaura na língua e no poema; a tradição medieval do canto, Sophia busca sua origem clássica, isto é, as origens Greco-Latinas da poesia portuguesa, onde o canto não era uma obsessão como um lamento, mas, oficio matemático e filosófico. Aliás, Vaga Música junto com Mar Absoluto e Viagem são os três livros utilizados por Sophia de Mello em seu estudo sobre a brasileira. Ela escreveu um artigo chamado em 1956:A poesia de Cecília Meireles” que tomava como base esses três livros. Neste artigo, Sophia se refere à Meireles como poeta e não como poetisa. Penso que em minha tese explanei bem a razão de se utilizar o termo poeta e não o seu “feminino natural”. Sobre isso, deixarei em anexo essa parte da tese que foi publicada como forma de ensaio no Portal Vermelho e no Jornal Tornado de Portugal.

Para Andresen: “A poesia de Cecília Meireles é uma poesia tão puramente lírica, tão naturalmente desligada de toda a espécie de problemas, que é impossível explicá-la.” (ANDRESEN apud RUSSELL, 2017 p. 121). Por Andresen (2017), Cecília retorna em sua obra a uma poesia que não precisa de explicações e análises, mas que deve ser sentida e vivida, assim como ela mesma, Sophia, propagava que deveria ser o plano poético; uma expressão do vivido: “A beleza e a verdade dum poema de C. M. tem que ser vivida imediatamente e sem explicações, como a beleza e a verdade duma rosa” (ANDRESEN apud RUSSELL, 2017 p. 121).

A salvação e destino pela poesia cumprem-se quando o poema se torna essa expressão da vida, enquanto o retorno ao paraíso é conseguido e restabelecido através da reunificação das polaridades, isto é, quando a poesia “caminha para a única unidade”.  A unificação do belo e do feio, do real e do imaginário, do feminino e do masculino se coloca como uma grande aspiração consciente da poeta portuguesa, o que a faz se aproximar de Cecília porque para ela: “A poesia de Cecília é construída sobre dualidades. É um equilíbrio de oposições e uma harmonia dos contrários”. (ANDRESEN apud RUSSELL, 2017 p.121).

A palavra em sua materialidade sonora purifica, porque busca um ser inteiro e puro, enquanto a justiça e a democracia aqui são atingidas graças à linguagem poética. O destino da canção é o ritmo, arrebatar a metáfora em som. Cecília quer fazer isso também através das lágrimas. Sophia as enxuga e limpa o rosto para que ele seja a face da contemplação. Silêncio absoluto. Ele será rompido através da escrita do canto, conto e pranto.

 

  • ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Antologia Poética. Portugal: Escritas, 2019. Disponível em: Sophia de Mello Breyner Andresen
  • ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Contos Exemplares. Portugal: Figueirinhas, 2002.
  • ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poemas Escolhidos. Org. de Vilma Âreas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. trad. Antônio da Costa Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
  • BACHELARD, Gaston. L’eau et les rêves. Paris: Librair José Corti, 1942.
  • BELLO, Maria do Rosário Lupi.  Contra o elogio mútuo: A paradoxal relação entre Sophia e Cecília. Disponível em: Contra o elogio mútuo: a paradoxal relação entre Sophia e Cecília, acesso em 25 de setembro de 2019.
  • BIBLIA SAGRADA, trad. João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
  • COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. Niterói: Civilização Brasileira, 1976.
  • ELIADE, Mircea. Mythes, rêves et mystêres. Paris: Gallimard, 1957.
  • MEIRELES, Cecília. Poesia Completa – vol.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
  • MORELATO, Adrienne Kátia Savazoni. Por que Poeta e não Poetisa?  In: Jornal Tornado. 2019. Disponível em: Por que poeta, e não poetisa?
  • MORELATO, Adrienne Kátia Savazoni. A transfiguração do corpo e do mito no desenho da escrita feminina através de Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen.  Orientadora: Profª Drª Guacira Marcondes Machado Leite. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós Graduação em Estudos Literários. UNESP, Araraquara, 2007.
  • MORELATO, Adrienne Kátia Savazoni. As vestes do Corpo e da Melancolia na Poesia de Autoria Feminina: Cecília Meireles, Gabriela Mistral e Henriqueta Lisboa. Orientadora: Profª Drª Guacira Marcondes Machado Leite (Tese de Doutorado). Programa de Pós Graduação em Estudos Literários. UNESP, Araraquara, 2017.
  • NIETZSCHE, Friederich. A Gaia Ciência. trad. Paulo Cesár Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
  • PUCCHIO, Luciana. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
  • RABELO, Maria Sonilce. O mar em Sophia: Poética, Tempo e Memória. Orientador: Dr. Fernando Segolin. (Mestrado em Literatura e Crítica Literária) – Programa de Estudos Pós Graduados em Literatura e Crítica Literária, PUC, São Paulo, 2012.
  • RUSSEL. Eduardo Silva. Sophia de Mello Breyner Andresen, Leitora de Poetas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ida Maria Santos Ferreira Alves. (Mestrado em Teoria Literária) – Programa de Pós Graduação em Estudos de Literatura, UFF,  Rio de Janeiro, 2017.
  • SALAMÃO, PESSONI e BERGAMO, Ana Paula, Júlia Nazar e Marília Lara. O ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA DE CECÍLIA MEIRELES: entre o antigo e o moderno, entre o lírico e o épico. Orientadora: Profª Drª Monica de Oliveira Faleiros. (Monografia para o Bacharelado), Graduaç  Uni-FACEF,   Franca, 2012.
  • TURCHI, Maria Zaira. Romanceiro da Inconfidência: O diálogo poético dos tempos. In: Signótica, v.11, Goiana, UFG, 1999 p, 137-162. Disponível em: Romanceiro da inconfidência: o diálogo poético dos tempos.

 


Texto original em português do Brasil



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