“É preciso dizer claramente: o programa proposto por José Antonio Kast é fascista”, afirmou Daniel Urrutia Laubreaux.
“No próximo domingo (19), o Chile vai optar entre a civilização e a barbárie. É preciso dizer claramente: o programa proposto por José Antonio Kast é fascista”, afirmou o juiz de Garantias de Santiago, Daniel Urrutia Laubreaux, em entrevista exclusiva.
Juiz responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos fundamentais do acusado, Laubreaux acredita que “a contradição atual tem que ver com um dilema civilizatório”. “O estalido social – as imensas manifestações de 2019 e 2020 contra o governo de direita de Sebastian Piñera – levantou bandeiras contra a desigualdade e nós estamos, neste momento, diante de uma disjuntiva frente a Kast”, apontou.
Entre outros retrocessos inadmissíveis, assinalou o magistrado, “o programa de governo da direita propõe estabelecer discriminações contra as mulheres ou a possibilidade de o presidente da República determinar a detenção ou a interceptação telefônica por cinco dias de quem quiser, sem dizer nada a ninguém, sem ordem judicial. Isto é voltar ao obscurantismo, algo que se via apenas na ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990)”. Na verdade, alertou, “é até pior, porque na ditadura isto sequer estava escrito”.
Na avaliação do juiz de Garantias da capital chilena, é preciso demarcar claramente a existência de dois polos políticos, linhas econômicas e sociais completamente antagônicas, “e nós não estamos mais em circunstância de aceitar a barbárie”. “Já vivemos isso durante a ditadura, com todo o sofrimento de mais de 50 mil torturados, mais de 60 mil exilados, mais de cinco mil executados”, frisou.
“Sofremos na ditadura com mais de 50 mil torturados, mais de 60 mil exilados e mais de cinco mil executados”
Conforme o magistrado, que ajuizou uma ação contra o Estado chileno em defesa dos direitos humanos na Corte Interamericana de Justiça, é inaceitável o retorno do obscurantismo e da opressão. “É preciso lutar com todas as forças para que isso não volte a ocorrer. Por isso é tão importante mudar a estrutura judicial. Não é aceitável que um programa autoritário volte a ter a cumplicidade do Judiciário em sua execução. Em todo o período da ditadura o Poder Judiciário não se levantou, não disse praticamente nada. No período de violações de direitos humanos, durante a ‘explosão social’, também não. Neste caso, pelo menos, foi ambivalente”.
A Constituição de Pinochet, que está vigente até o momento, apontou o juiz, precisa ser completamente revisada em seus fundamentos básicos, pois reflete a mesma cultura do Poder Judiciário vinda dos tempos coloniais.
Para fazer avançar, disse Laubreaux, a Associação dos Magistrados e Magistradas do Chile, “tem uma proposta no sentido de separar a função administrativa da jurisdicional”. “Nos termos da Constituição de 1980 , o Supremo tem a competência sobre todo o Judiciário, sobre todos os tribunais e juízos, em matérias financeira, disciplinar e jurisdicional. Tudo é decidido pelo Tribunal Pleno, o que tem gerado distorções naquilo que as pessoas esperam quando enfrentam uma possível decisão. A expectativa correta é que o caso concreto de um cidadão seja submetido a um terceiro, imparcial, que resolva com olhos nos fatos e na lei cabível. Mas, ao contrário, neste sistema, o juiz olha o fato, olha a lei e olha também o que a estrutura judiciária gostaria que ele julgasse. Ou seja, se convém mais decidir contra o entendimento da alta corte ou se alinhar ao que prega a opinião majoritária dos ‘chefes’, seus superiores hierárquicos”, explicou.
Na prática há uma disjuntiva entre se submeter ao poder do rei ou aos princípios da Justiça, “uma contradição permanente”. “Por isso está estabelecido que aos juízes de instância usamos o tratamento de ‘Sua Senhoria’, aos juízes de cortes de apelações, nós juízes de instância devemos usar ‘Sua Senhoria Ilustríssima’ e aos ministros da Corte Suprema ‘Sua Senhoria Excelentíssima’, o que é evidentemente colonial. Isso está na lei, mas não se trata do papel de funções diferenciadas para resolver problemas, senão da construção de uma retórica autoritária hierárquica. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, recentemente, num processo que ajuizei, condenou o Estado chileno justamente por essa estrutura hierárquica. O voto neste sentido do juiz Eugênio Raul Zafaroni declarou que a estrutura hierárquica do Poder Judiciário chileno, assim como de outros na América Latina, vai contra a democracia justamente porque gera o entendimento de que há perigo em decidir diferente do que meus ‘superiores hierárquicos’ decidem. Ou seja, que se eu contrariar a hierarquia, vou sofrer represálias como juiz e se for a favor posso até ser premiado”, ponderou.
“Fui processado por dizer que o Judiciário deveria pedir perdão por sua omissão e participação como cúmplice na ditadura de Pinochet”
Em 2005, em razão de um curso de pós-graduação que ministrou, recordou, “escrevi sobre como introduzir o tema dos Direitos Humanos no âmbito do Poder Judiciário”. “Nesse trabalho sustentei, entre outras coisas, que o Judiciário deveria pedir perdão por sua omissão e sua participação como cúmplice na ditadura militar de Augusto Pinochet. Isso levou a Corte Suprema a abrir um processo administrativo contra mim, por ter feito tal declaração numa tese acadêmica, e, sumariamente, me puniram não por meu trabalho como juiz, mas por um trabalho acadêmico na universidade”, denunciou.
Segundo Laubreaux, isso gerou, evidentemente, “a concretização do poder hierárquico da Corte Suprema, que se sentiu ofendida por um trabalho acadêmico que não expressava nenhuma ofensa a ninguém”. O juiz lembrou que era uma análise crítica da atuação do Judiciário chileno, tendo como horizonte avançar na aplicação e na promoção dos direitos humanos como base do sistema. ”Mas a Corte Suprema, ao contrário, entendeu como uma ofensa, e me processou. Então a Corte de Apelações a que eu estava vinculado abriu o processo, por ordem de seus chefes e, obviamente, teria que terminar com uma punição. Me aplicam uma punição administrativa e eu resolvi apelar dessa punição. A questão é: a quem apelo? À Corte Suprema que me denunciou? É evidente que deveriam dar-se por impedidos de resolver algo que eles mesmos tinham feito, mas não. Não se consideram impedidos, mas resolvem reduzir a punição, basicamente porque entendem que minha ‘impertinência’ se devia à minha juventude e que, no futuro, eu lhes daria razão. Não tinham ideia do que estavam fazendo. Não tinha sentido, tampouco o tempo lhes deu razão. O que aconteceu, dezesseis anos depois, foi que a Corte Interamericana estabeleceu que houve uma violação à Convenção Americana, tanto em relação ao direito de defesa, quanto ao direito a um juiz imparcial, coisa que nunca tive, pois a Corte Suprema, a ofendida, era juiz e parte ao mesmo tempo. Então se condena o Estado chileno por todas essas infrações ao livre processo e, o que considero mais importante, é que fica claro que essa estrutura judicial não serve para uma democracia. A sentença da Corte Interamericana, veio agora, num momento importante que é a construção de uma nova Constituição pela Convenção Constituinte que está discutindo como deve ser um Poder Judiciário nos tempos atuais”.
Na árdua batalha pela Justiça, o magistrado acumula quatorze processos administrativos, a maioria por decisões judiciais a favor dos direitos das pessoas. “Fui punido poucas vezes. Atualmente tenho dois processos abertos, aguardando decisão. Um deles por haver libertado treze manifestantes imputados durante o estalido que, pelo código penal, não era caso de prisão preventiva, em razão da Covid. Eu os deixei em liberdade e a Corte de Apelação abriu um processo administrativo que se arrasta há mais de um ano. Me suspenderam das funções, de uma maneira muito equivocada. Eu tenho atualmente também uma causa penal por prevaricação, contra o que fizeram. Tenho outro processo em aberto desde o ano de 2015 por haver libertado setenta e cinco manifestantes. Participaram de uma mobilização social dentro do direito de manifestar-se. Então era evidente que teria de absolvê-los e, como o fiz, a corte abriu o processo e obrigou a julgar novamente. Outro colega julgou o caso e os absolveu também porque era evidente que eram inocentes. Mesmo assim, eu sigo com o processo aberto esperando julgamento. São situações complexas porque a estrutura hierárquica vai contra os que pensam diferente. Isto é muito grave numa democracia”.
Comprometido com a Justiça, Laubreaux foi alvo de assédio e acosso, precisando sair do Chile em duas oportunidades. “Em 2009, por conta de uma perseguição por parte de uma ministra da Corte Suprema que eu havia denunciado porque eu defendia os direitos dos presos e ela me chamou por telefone para dizer que eu deveria deixar de fazê-lo. Eu a denunciei, não fizeram nada em relação a ela, mas abriram um processo contra mim e tive que sair do país por três anos. Depois, em 2017, havia uma pressão muito grande para expulsar-me do Judiciário da qual faz parte aquele processo de 2015. Então fui passar um ano em Honduras numa missão anticorrupção. Missão da qual, é preciso dizer, tive que sair também porque denunciamos o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luiz Almagro, por corrupção”.
Questionado sobre a existência de presos do estalido social, o juiz respondeu que todos têm processo judicial e passaram pelo controle de um juiz, não havendo nenhum detento sem processo. “O que tem ocorrido é que, muitas vezes, os antecedentes alegados pelo Ministério Público não são suficientes para uma possível condenação. Por isso tem havido muitos casos de absolvições. São os juízes que os soltam. Julgam e absolvem, porque as provas são de muito má qualidade. Por isso se diz que tem havido perseguição política e se reconhece que muitos deles são presos políticos”, ressaltou.
O fato, assinalou Laubreaux, é que “o governo, através das querelas apresentadas por supostos delitos contra o Estado ou por delitos comuns, defende situações muito complexas perante o juiz. Dizem: vejam, temos estas provas. Mas resulta que as provas terminam sendo ou falsas ou não tão efetivas como disseram e sequer cumprem os requisitos básicos. Mas isso acontece depois de dois anos que a pessoa ficou presa preventivamente. Então, não existem presos no Chile sem uma decisão jurisdicional. A questão é se esta decisão cumpriu os requisitos básicos de defesa e promoção dos direitos humanos ou não. Esta pergunta tem que ser feita. Em alguns casos sim, em outros não. De erros judiciais estamos cheios em todos os países, mas precisamos ter uma estrutura que assegure a defesa e a promoção dos direitos humanos. Isto não quer dizer que alguém que tenha cometido um crime, que tenha provocado um incêndio ou algo assim, não deva ser punido judicialmente. Outra coisa diferente são as decisões políticas que se pode adotar. O Judiciário tem que assegurar imparcialidade de forma que os casos iguais sejam tratados de forma igual. Não é porque o governo é o acusador que o caso deva ser tratado de forma desigual, e isso muitas vezes tem ocorrido. Por exemplo, a Corte de Apelações de Santiago, a maior do país, durante o estalido, rechaçou todos e cada um dos recursos que objetivaram colocar freio à repressão não convencional do governo através da polícia, dos Carabineiros do Chile”.
“Se a Corte tivesse aceitado um dos recursos que buscava impedir o uso de balas de borracha não teríamos 400 pessoas mutiladas”
“Se a Corte tivesse aceitado um dos recursos que buscava impedir o uso de balas de borracha não teríamos 400 pessoas mutiladas”, sentenciou o juiz, para quem este é um dado bastante objetivo. Mas, infelizmente, “a Corte rechaçou esses recursos, dizendo que estava bem assim, e que a polícia poderia utilizar balas de borracha que muitas vezes tem chumbo dentro, contra pessoas que estavam se manifestando. Isto deve ser analisado para sabermos o que aconteceu para que essa Corte não adotasse as medidas necessárias para proteger os manifestantes pacíficos”.
Para o magistrado, “é o momento de impulsionar mecanismos de participação, o mais amplo possível, e assegurar que a maior quantidade de grupos esteja representada nas eleições”. Entre outros, Laubreaux cita a necessidade de garantir a presença das diferentes nações indígenas, da paridade entre homens e mulheres, de lutar contra a discriminação. “Só dessa forma vamos conseguir que as decisões beneficiem a todos e não apenas para um grupo que detenha o poder econômico, mantendo sua hegemonia”, disse.
Diante da relevância do momento político, o juiz considera “fundamental que todos venham votar porque temos que defender o processo constituinte que pode trazer efetivamente mudanças estruturais e permitir ao país abandonar a desigualdade abismal existente”.
por Caio Teixeira e Leonardo Wexell Severo | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado
- Caio Teixeira, Jornalista
- Leonardo Wexell Severo, Jornalista e analista internacional