Sociólogo explica relações entre legisladores e milicianos
Em entrevista para a agência Pública, o sociólogo José Cláudio Souza Alves, que estuda as milícias há 26 anos, explica as relações entre legisladores e milicianos e diz que a família Bolsonaro é herdeira política de deputados ligados a grupos de extermínio nos anos 90.
Confira, abaixo, trechos da entrevista:
“No Rio de Janeiro a milícia não é um poder paralelo. É o Estado”
Na semana passada, a operação “Os Intocáveis” prendeu integrantes da milícia que opera em Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Um dos alvos da operação foi o ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, acusado de chefiar a milícia de Rio das Pedras e integrar o grupo de extermínio Escritório do Crime – atualmente investigado pela morte de Marielle Franco. Sua mãe e sua esposa já trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Flávio também havia homenageado Adriano com a Medalha Tiradentes, a maior honraria concedida pela Alerj.
Mas a notícia não surpreendeu o autor do livro Dos Barões ao extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense, José Cláudio Souza Alves. Sociólogo e ex-pró-reitor de Extensão da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio estuda as milícias há 26 anos. Em entrevista à Pública, ele resume, com veemência: “A milícia é o Estado.”
“São formadas pelos próprios agentes do Estado. É um matador, é um miliciano que é deputado, que é vereador. É um miliciano que é Secretário de Meio Ambiente. Sem essa conexão direta com a estrutura do Estado não haveria milícia na atuação que ela tem hoje,” acrescenta.
Segundo José Cláudio, é comum familiares de milicianos serem empregados em gabinetes de deputados e vereadores. “Isso é muito comum. Esse vínculo lhe dá poder naquela comunidade. Ele vai ser chamado agora na comunidade: ‘Olha é o cara que tem um poder junto lá ao Deputado, qualquer coisa a gente resolve, fala com ele, que ele fala com a mãe e com a esposa e elas falam diretamente com o Flávio e isso é resolvido’”.
Nessa entrevista, ele explica a origem desses grupos e suas ligações com a política: “Cinco décadas de grupo de extermínio resultaram em 70% de votação em Bolsonaro na Baixada”.
Como nasceram as milícias do Rio de Janeiro?
Isso estourou na época da ditadura militar com muita força. Em 1967 surge a Polícia Militar nos moldes atuais de força ostensiva e auxiliar aos militares naquela época. E a partir daí há o surgimento dos esquadrões da morte. No final dos anos 1960, as milícias surgiram como grupos de extermínio compostos por Policiais Militares e outros agentes de segurança que atuavam como matadores de aluguel.
Esses esquadrões da morte vão estar funcionando a pleno vapor nos anos 1970. Depois começa a surgir a atuação de civis como lideranças de grupos de extermínio, mas sempre em uma relação com os agentes do Estado. Isso ao longo dos anos 1980. Com a democracia, esses mesmos matadores dos anos 1980 começam a se eleger nos anos 1990. Se elegem prefeitos, vereadores, deputados.
De 1995 até 2000, você tem o protótipo do que seriam as milícias na Baixada, Zona Oeste e no Rio de Janeiro. Elas estão associadas a ocupações urbanas de terras. São lideranças que estão emergindo dessas ocupações e estão ligadas diretamente à questão das terras na Baixada Fluminense. A partir dos anos 2000, esses milicianos já estão se constituindo como são hoje. São Policiais Militares, Policiais Civis, bombeiros, agentes de segurança, e atuam em áreas onde antes tinha a presença do tráfico, em uma relação de confronto com o tráfico. Mas ao mesmo tempo estabelecem uma estrutura de poder calcado na cobrança de taxas, na venda de serviços e bens urbanos como água, aterro, terrenos.
Há apoio da população às milícias?
A milícia surge com o discurso que veio para se contrapor ao tráfico. E esse discurso ainda cola. Só que com o tempo a população vai vendo que quem se contrapõe a eles, eles matam. E eles passam a controlar os vários comércios. Então a população já começa a ficar assustada e já não apoia tanto. É sempre assim a história das milícias.
Qual a história de Rio das Pedras?
Rio das Pedras é uma comunidade em expansão onde vivem nordestinos muito pobres. Existem terrenos lá que você não pode construir porque são inadequados, são muito movediços. Então só tem uma faixa específica de terra onde você pode construir. São terras irregulares, devolutas da União, ou terras de particulares que não conseguiram se manter naquele espaço. Então a milícia passa a controlar, toma e legaliza – às vezes até via Prefeitura mesmo, pagando IPTU desses imóveis. Como o sistema fundiário não é regulado, facilmente os milicianos têm acesso a informações e vão tomar essas áreas. E passam a vendê-las.
Rio das Pedras foi a primeira milícia do Rio?
Não é bem assim. Ao meu ver a milícia surgiu em diferentes lugares ao mesmo tempo, simultaneamente. Então tem Rio das Pedras, mas tem Zona Oeste do Rio e tem, por exemplo, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
Eu percebo dos anos 1995 a 2000, grosso modo, um período de emergência dessas ocupações urbanas de terras, ainda não no protótipo de milícias, mas com lideranças comunitárias próximas ao que seria um controle pela violência, um controle político mais autoritário.
Só que Rio das Pedras ela emerge mais rapidamente. Então ali começa esse vínculo da cobrança de taxa, que nas outras ainda não tinha. E são os comerciantes que pagam a eles.
É uma comunidade miserável, empobrecida, que está se constituindo a partir de uma rede migratória de nordestinos. E ela fica diante de um grupo de milicianos que estão sendo chamados para dar proteção, impedir que o tráfico entre. Mas na verdade é para proteger os interesses comerciais desses lojistas que estão se instalado lá em Rio das Pedras e estão financiando esses caras.
Hoje são quantas as milícias do Rio de Janeiro?
Eu tenho noção que são muitas. Por exemplo, são várias que atuam em São Bento e no Pilar, que é o segundo maior distrito de Duque de Caxias. Tem em Nova Iguaçu, tem em Queimada. Praticamente cada município da Baixada Fluminense você tem a presença de milícias. Seropédica, por exemplo, hoje é uma cidade dominada por milicianos. Eles controlam taxas de segurança que cobram do comércio. Aqui tem os areais, de onde se extrai muita areia – e muitos são clandestinos. Então eles também cobram dali. Moto-táxi tem que pagar 80 reais por semana para funcionar. Pipoqueiro paga 50 reais por semana. É uma loucura.
Dizem que é para a segurança, proteção, eles estão supostamente protegendo esse comércio. Mas depois controlam a distribuição de água, de gás, de cigarro, de bebida. E há histórias de assassinato de gente que não aceitou, por exemplo.
Além disso, eles são pagos para fazer execuções sumárias. Então há um mercado que movimenta milhões já há algum tempo.
Eles também lidam com tráfico de drogas, com algumas facções especificas. O Terceiro Comando Puro funciona aqui em algumas cidades da baixada a partir de acordos com milicianos. Eles fazem acordo com o tráfico e vão ganhar dinheiro também disso. Cobram aluguel de áreas. É a mesma relação que a polícia tem com o tráfico: só funciona ali se você pagar suborno.
(…)
É comum casos como a mãe e a esposa de Adriano Magalhães de Nóbrega, que foram contratadas como assessoras no gabinete de Flávio Bolsonaro?
Sim. Isso é muito comum. Você cria um vínculo de poder e de grana com essas pessoas. Esse cara, a partir de sua esposa e de sua mãe, cria um vínculo imediato com o Flávio Bolsonaro e isso lhe dá força. Essas duas pessoas estão fazendo um elo imediato, pessoal, familiar do Adriano com Flávio Bolsonaro. Esse vínculo lhe dá poder naquela comunidade. Ele vai ser chamado agora na comunidade “Olha é o cara que tem um poder junto lá ao Deputado, qualquer coisa a gente resolve, fala com ele, que ele fala com a mãe e com a esposa e eles falam diretamente com o Flávio e isso é resolvido”.
Assim você está criando uma estrutura de poder, que é familiar. Veja bem: é o que eles defendem. Eles defendem a estrutura familiar. E se você investigar um pouco mais vai ser religioso também. São igrejas evangélicas, eles têm vínculo com essa estrutura. Então é uma estrutura perfeita, ela é tradicional, conservadora, ela tem a linguagem religiosa, que é linguagem de grande credibilidade.
Isso também demonstra uma forma de atuar dessas pessoas. Eles não atuam pelo ocultamento. O Adriano, Flávio Bolsonaro, o próprio Bolsonaro, os matadores da Baixada. Todos esses grupos que lidam com a violência, com a execução sumária, com o crime organizado, eles não atuam com baixo perfil.
No Brasil o que você tem é a superexposição. Eu chego e já digo. “Eu sou o cara, eu sou o matador, eu tenho vínculos com fulano, beltrano e sicrano. Eu ocupo este cargo”. Que é pra deixar bem claro se você for tentar alguma coisa é isso que você vai enfrentar.
É a base total do medo. E não é só do medo: é real.
Sobre esse capital político, eles têm o poder inclusive de manipular o voto da população durante o período das eleições? Existe uma rede organizada para isso?
Na verdade, as milícias vendem votações inteiras de comunidade. Aqui na Baixada como um todo, Zona Oeste. Fecham pacote. Eles têm controle. Eles têm controle preciso de título de eleitor, local de votação de cada título de eleitor, quantos votos vai ter ali. Eles são capazes de identificar quem não votou neles.
Mas não está havendo ações de desmontagem dessa estrutura, como se viu em Rio das Pedras?
Assim, a Operação Intocáveis pode estar dentro de um perfil mais de uma operação mais histórica. Mas eu tenho sido muito crítico a esse tipo de operação. Como a milícia é uma rede, uma rede muito grande, para cada um preso você tem 100 para entrar no lugar. Porque se você mantém a estrutura funcionando, economicamente, politicamente ela vai se perpetuar.
Ninguém toca nesses caras. Em geral, só estão tocando no tráfico. E tráfico não é o mais poderoso. Milícia é mais poderosa do que o tráfico. Milícia se elege, tráfico não se elege. A base econômica da milícia está em expansão, não é tocada, não é arranhada. Traficante não, vive morrendo e sendo morto e matando. Milícia é o Estado.
Inclusive tem isso. Você olha para a cara dos milicianos presos, há uma tendência a serem brancos. Não há uma tendência a serem negros. Vai aparecer um ou outro no meio, um moreno, pardo. E não são magros, são bem alimentados. Eu tenho certeza que a classe da qual pertencem os milicianos é uma classe diferenciada da classe do tráfico. Não são tão pobres assim. Não são tão negros assim. Não são tão periféricos assim.
Para além desse vínculo político de poder existe também algum elo financeiro? Como que os milicianos movimentam dinheiro através dessas conexões com políticos? Qual era, por exemplo, o papel do Queiroz ali no Gabinete do Flávio Bolsonaro?
Ah sim, você viu que ele tem uma movimentação suspeita alta. Tem 7 milhões. Aí você vai por dedução. Pode ser que esse cara fazia uma ponte. Ele era um assessor, mas ao mesmo tempo ele cumpria duas funções. Ele ganha um respaldo político do Flávio Bolsonaro. Ele faz o elo direito da milícia com esse gabinete. Dos interesses dessa milícia e dos que são servidos por essa milícia direito com esse gabinete. Ao mesmo tempo ele cresce na estrutura da milícia.
Não sei qual é o histórico dele. Mas de repente ele já estava na estrutura da milícia e já movimentando dinheiro. Então, por exemplo, se ele for uma frente, um cara que está na organização, por exemplo, de cobrança de taxa de segurança, ele está movimentando dinheiro. Muito dinheiro. Aí de repente ele vai movimentar parte desse dinheiro dentro da sua conta pessoal. É uma estrutura de organização que ele criou. Então esses 7 milhões pode ser isso.
Para ler a íntegra do texto, no site da Pública
Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado