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Terça-feira, Julho 16, 2024

Noite de Reis, Uma comédia feliz

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

Shakespeare, que li todo (é verdade, num ensaio que escrevi como trabalho final para o Prof. Moser, na Faculdade de Letras, e que incidia sobre A Música das Esferas), procurei, em cada peça, de que modo a música, desde o Harmonioso Platão, tinha incidências trágicas ou felizes na dramaturgia do maior e mais misterioso ainda, criador teatral do século XVI inglês.

Ele existia? Era ele ou um seu alter ego que escrevia tudo, ia beber em núcleos históricos, populares, escrevia sozinho ou em conjunto com os seus actores, amigos mais próximos, perto do povo ou da côrte e seu apelo? Espírito universal, tudo lhe interessava e transformava em matéria de criação, como num dos seus mais desafiantes textos, The Tempest, não por ser o último, mas por ser aquele em que define o seu conceito do que é a humanidade, a espécie humana, o “pequeno mundo” de que virá Goethe, amante das suas Obras e já bom conhecedor ( pois tinham sido traduzidos por Wieland para alemão) recuperar alguns dos seus conceitos no Wilhelm Meister e no Fausto.

A Noite de Reis, dir-se-á, pretende ser variante de comédia de enganos, com situações mais cómicas do que trágico-cómicas, duplos, disfarces e partidas que pouco farão sofrer, antes de se chegar ao final que resume, mesmo assim uma moralidade: o bom tom exige…

No primeiro acto, a música perpassa, mas é logo ultrapassada por outro sentimento: o do Duque Orsino, que manda afastar os músicos, enquanto comenta: se a música é o alimento do amor, continuem; dêem-ma em excesso, para que o apetite que tenho dela acabe por morrer.

Está a referir-se ao seu amor, que já não é o mesmo, por Orsina, amada que perdeu de vista, e que o perfume da música já não lhe traz de volta. Desvia então o discurso para o espírito do amor, “rápido e fresco”, como diz, e tão rapidamente perdido, num suposto naufrágio.

A música, que enleva, o amor que se julga perdido e faz sofrer.

Entrámos assim numa trama, que será como a das comédias de enganos, vai oferecer ao público um pouco de tudo, mas acima de tudo intriga previsível, distracção saborosa, em tempos por vezes bem cruéis.

Uma ilha em que se naufraga tem algo de paradisíaco.

Liberdade, esperança, e fantasia, de que as almas sofridas ou o mundo cruel se afastem ou corrijam para sempre. A ilha é um espaço de utopia.

Encontro esta mesma expressão na Tempestade:

A ilha está cheia de barulhos,
Sons, doces árias, que deliciam e não fazem doer.
Oiço por vezes mil instrumentos de cordas
E oiço vozes
Que ajudam a adormecer.

Aqui temos uma ilha que é um paraíso de harmonia musical, mas não se pode esquecer que ali tudo obedece ao comando de um mágico, Próspero, rei deposto dos seus direitos, que em breve serão recuperados, e ele próprio, antes desejando oferecer felicidade que vingança, abdicará dos seus poderes de feiticeiro, regressando à condição humana natural.

Não há quem não tenha decorado, para sempre, se leram esta obra magistral, o célebre verso:

“Nós somos a matéria
De que os sonhos são feitos.
E a nossa pequena vida
Está rodeada por um sono (v.157)

Na Noite de Reis, as confusões vão sendo esclarecidas, como seria de bom tom, numa peça de teatro, e ainda mais numa de entretenimento.

Não se discutem conceitos mais profundos, como o do ser primitivo (Caliban) nascido e protector da natureza de que nasceu, e embora com selvajaria tanto ame, contrariando a varinha “ordenadora” de Próspero que o subjugou.

Agora nesta peça é na boca do Bobo que a conclusão moral se tira. Algo muito comum, ser o louco a dizer as verdades que se impunham, pois a um louco tudo se permitia, e Shakespeare não se esquece de aproveitar, no meio de tanta música alegre, de impor o seu olhar mais filosofante.

Desfeitas as confusões, a peça chega ao fim.

E com uma canção, tal como poderia ter começado, de gosto mais popular:

When that I was and a little tiny boy,
With hey, ho, the wind and the rain,
A foolish thing was but a toy,
For the rain it raineth every day.

But  when I came to man’s estate,
With hey, ho, the wind and the rain,
Gainst knaves and thieves men shut their gates
For the rain it raineth everyday.

But when I came, alas to wive,
With hey, ho, the wind and the rain,
By swaggering could I never thrive,
For the rain it raineth every day.

But when I came unto my beds,
With hey, ho, with the wind and the rain,
With toss-pots still had drunken heads,
For the rain it raineth every day.

A great while ago the world begun,
With hey, ho, the win and the rain,
But that’s all one, our play is done,
And we ‘ll strive to please every day.

 

Moralidade?
A condição do Homem:

criança
homem
marido
idoso
o mundo será sempre para nós igual, faça chuva ou faça vento.
Com música para cada momento.

 

Impossível não chamar a atenção, como faz René Girard, emWilliam Shakespeare, a Theater of Envy, para um pormenor que se vai tornando evidente à medida que mais lemos peças de teor semelhante em que os personagens se vão assemelhando, perdendo parte da sua identidade, quando o processo mimético se acentua e desenvolve. Direi que se nota muito especialmente nesta Noite de Reis, ainda que sem a nota caricatural de outras peças. Shakespeare regressa aqui ao jogo dos gémeos Viola e Sebastian, fazendo deste modo uma espécie de desconstrução de significados e diferenças, que eram muito usuais e iam retirando, afinal, interesse à narrativa apresentada.

Este artifício já o nosso autor o tinha utilizado em The Comedy of Errors (inspirado em Plauto).

A questão central não será tanto a da duplicidade, confusões divertidas e erros, – mas antes a da relação de um eu que se encontra num outro que afinal é ele mesmo, em situação de centrípeto egoísmo, que o desejo (que Girard define como Envy desejo de ser o outro) encapotadamente conduz.


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