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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

Nos 60 anos do Tratado de Roma

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

A 25 de Março de 1957 foi assinado, por seis países, o Tratado de Roma, que instituía a CEE, Comunidade Económica Europeia. Seis anos depois da instituição da CECA, pelo Tratado de Paris (em 1951)

A ideia

Arrancava, assim, um processo que dera os primeiros passos logo no imediato pós-Grande Guerra. A ideia inspiradora era a ideia de paz. E não foi por acaso que começou com uma comunidade europeia do carvão e do aço. Há nisto também uma simbologia, por se tratar do principal sector que alimentava a indústria da guerra.

De resto, a guerra sempre fora o grande martírio da Europa. Os dez milhões de mortos da Grande Guerra dariam origem à Sociedade das Nações. E pouco depois começariam as iniciativas tendentes à construção de uma Europa unida, assinaladas por nomes como os de Coudenhove-Kalergi (o movimento Paneuropeu), Aristide Briand, Winston Churchill, Jean Monnet, Altiero Spinelli e Ernesto Rossi (“Il Manifesto di Ventotene”, 1941), Robert Schuman.

As ditaduras europeias de entre-guerras e a Segunda Guerra Mundial viriam a acentuar a necessidade de dotar a Europa de uma estrutura política comum que pudesse evitar novas tragédias.

A herança era, em trinta anos, de cerca de 50 milhões de mortos e uma Europa destruída que necessitou de um Plano Marshall para a reconstrução, cerca de 14 mil milhões de dólares. Seminal foi o “Manifesto di Ventotene”, de Spinelli e Rossi, hoje assumido como texto fundador.

 A CEE

O primeiro Tratado foi o da CECA (1951), tendo-se-lhe seguido, em 1957, o da Comunidade Económica Europeia (CEE), que se dotou das seguintes instituições:

 

  1. Uma Assembleia com 142 deputados (ainda delegados dos parlamentos nacionais) e com poderes deliberativos e de controlo (art. 137).

  2. Um Conselho com funções de coordenação das políticas económicas gerais dos Estados-membros e poder de decisão (art. 145). Tratava-se do verdadeiro órgão de poder da Comunidade.

  3. Uma Comissão que controlava a aplicação do Tratado, formulando recomendações e pareceres, e dispondo de um próprio poder de decisão. Participava na formação dos actos do Conselho e da Assembleia, exercendo as competências que lhe fossem atribuídas por aquele (art. 155). Os comissários eram nomeados por comum acordo entre os governos dos Estados membros (art. 158).

  4. Um Tribunal de Justiça que assegurava o respeito pelo direito na interpretação e na aplicação do Tratado (art. 164). Nada que não estivesse já na CECA. Mas a partir do Tratado de Roma verificar-se-ia uma evolução que conheceria, em síntese, importantes etapas para o aprofundamento da união económica e monetário-financeira e para a construção da União política, depois de consolidadas as principais conquistas do Tratado que instituiu a CEE: mercado comum, união aduaneira, as quatro liberdades, a livre concorrência, a elaboração das políticas comuns (agrícola, comercial, de transportes). Nesta fase, o Parlamento europeu tinha uma função tão-só consultiva, além de uma prerrogativa de natureza negativa, como, de resto, já acontecia na CECA, ou seja, a possibilidade de demitir a Comissão através de uma moção de censura. Por sua vez, a Comissão detinha o poder de iniciativa legislativa e o poder de execução das políticas comuns.

Os outros Tratados

Mantendo-se em vigor, e em paralelo, os três Tratados (CECA, EURATOM e CEE), tornou-se necessário, a certa altura, fundir as Instituições dos Tratados, o que viria a acontecer com o chamado Tratado de Fusão, de 1965, onde se deu a substituição dos três Conselhos de Ministros e das duas Comissões (CEE e EURATOM) e da Alta Autoridade por um Conselho e uma Comissão únicos. Também se viria a verificar um orçamento de funcionamento único.

A primeira grande reforma dos Tratados viria a acontecer com o chamado Acto Único Europeu, já Portugal e Espanha tinham entrado para a União, sendo esta constituída por 12 membros. De facto, a União tinha visto entrar, em 1973, o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca, em 1981, a Grécia e, em 1986, Portugal e a Espanha. Em 1995, viriam a entrar, para a chamada Europa dos Quinze, a Áustria, a Finlândia e a Suécia.

O Acto Único lançou o objectivo de realizar o grande mercado interno até 1992, com a supressão progressiva das fronteiras técnicas, a supressão das formalidades de controlo aduaneiro na passagem das fronteiras com pessoas e mercadorias; introduziu, no plano legislativo, o procedimento da cooperação (há que sublinhar que o PE – eleito por sufrágio universal a partir de 1979 – já tinha conseguido, em 1975, a capacidade de rejeição do Orçamento comunitário e que, entretanto, fora criado o Tribunal de Contas); alargou as chamadas competências comunitárias; o voto por «maioria qualificada», no Conselho, passou a ser aplicado à maior parte dos domínios associados à realização do mercado único (com a excepção da fiscalidade); institucionalizou o Conselho Europeu e reforçou a coesão económica e social.

Seguiu-se o Tratado de Maastricht, de 1992 (que entrou em vigor em 1993), que viria a congregar numa só entidade as três Comunidades (CECA, EURATOM e CEE) – a União Europeia. Introduziu-se a designação Comunidade Europeia, eliminando a designação económica, criou-se a União Económica e Monetária, instituiu-se novas políticas comunitárias (educação e cultura) e reforçou-se o poder do Parlamento Europeu através do chamado procedimento da codecisão, do procedimento do parecer conforme, nos acordos internacionais, e da aprovação da nomeação dos membros da Comissão; criou-se o Comité das Regiões e iniciou-se a convergência económica e monetária.

Este importante Tratado instaurou no concreto a cidadania europeiaao conceder direito de voto nas eleições europeias para o PE, que tinham sido instituídas em 1979, e nas eleições municipais aos cidadãos europeus residentes no estrangeiro, em países da União – e consagrou o princípio da subsidiariedade.

Seguiu-se-lhe o Tratado de Amesterdão (1997), em vigor em 1999,  vindo reforçar algumas tendências anteriores no sentido da comunitarização e do reforço do papel do PE; o Tratado de Nice (2001), em vigor em 2003, orientado para a resolução dos problemas ligados ao alargamento, à composição da Comissão, à ponderação dos votos no Conselho e ao alargamento dos casos de votação por maioria qualificada; o Tratado que adopta uma Constituição para a Europa, de 2004 (que viria a ser recusado em dois referendos, em 2005); e, finalmente, o Tratado de Lisboa, em 2007, que, uma vez concluído, em Outubro de 2009, o processo de ratificação por todos os Estados-Membros, viria a entrar em vigor a 1 de Dezembro de 2009, depois de ter sido, antes, recusado em referendo pela Irlanda.

O Tratado da Constituição Europeia foi rejeitado, tal como a integração nele da Carta dos Direitos Fundamentais da União, tendo o Tratado de Lisboa ficado dividido em Tratado da União Europeia e Tratado sobre o funcionamento da União Europeia. À Carta, que não integra o Tratado, foi todavia atribuído o mesmo valor do Tratado. Neste Tratado, o Parlamento Europeu passou a ter formalmente funções legislativas e orçamentais e a eleger o Presidente da Comissão Europeia. Este, em resumo, o percurso institucional da União Europeia até hoje. Mas qual é a situação actual, do ponto de vista político?

A situação actual da União

A situação actual é muito complexa, vistos os problemas que estão em cima da mesa, a começar pela questão dos refugiados (só em 2015, entraram na União um milhão e duzentos mil refugiados), pelo Brexit, formalizado ontem (29.03.17) por carta de Theresa May a Donald Tusk (“to restore (…) our national self-determination”), pelas tendências centrífugas (relativas à União e/ou ao Euro) que têm vindo a ganhar um peso preocupante em vários países, pela crise das dívidas soberanas e, mais em geral, pela crise financeira da União, pela tensão com a Turquia e com a Rússia, pelas problemáticas relações com os USA de Donald Trump e pelo impasse na urgente reforma político-institucional. As questões que se põem são questões de fundo.

Em primeiro lugar, a questão do imperativo histórico da União: a justificação clara e substantiva de que a União faz sentido, de foi um passo histórico irreversível, sendo o retrocesso uma resposta errada ao processo imparável da globalização. Este é a meu ver o primeiro e grande combate que a liderança europeia deveria promover, a nível europeu e dos Estados membros: a demonstração irrefutável de que a União e o Euro são as respostas históricas mais correctas aos desafios da globalização. Um combate tanto mais necessário quanto a União pode exibir índices incomparáveis no plano mundial. É a maior potência comercial e o maior mercado único do mundo. Com poucos anos de vida, o euro tornou-se a segunda moeda mundial, 30% contra 43% do dólar USA, impedindo que os USA determinassem, sozinhos, directamente através da moeda, a economia mundial. É o segundo PIB mundial, com 22% (contra 24% dos USA).

Dois terços dos europeus querem estabilidade na União, 80% defendem as quatro liberdades (livre circulação de pessoas, bens, capitais e serviços) e 70% defendem o euro. Depois, 1,7 milhões de pessoas da União desloca-se para outro Estado-membro por razões de trabalho ou de estudo. Sendo demograficamente preocupante (em 2015 a União exibia 6% da população mundial, quando, em 1960, exibia 11% e, em 1900, 25%), é, ao mesmo tempo, um bom indicador da evolução civilizacional da União ter uma idade média de 45 anos (projecção para 2030), possuindo um dos mais avançados Estados Sociais do mundo. É um espaço de 500 milhões de pessoas em 400 milhões de quilómetros quadrados. Líder (com 40%) nas tecnologias das energias renováveis e nas “cidades inteligentes, a União possui um alto índice de desenvolvimento tecnológico e informacional.

Em segundo lugar, a questão de uma imprescindível reforma institucional que responda a dois problemas: o da legitimidade política ou défice democrático e o da eficácia na acção e no funcionamento (no plano interno e no plano internacional).

Em terceiro lugar, a questão da resposta, sustentada numa visão estratégica claramente assumida, ao problema das migrações (refugiados e, em geral, imigração), estando a União sujeita a uma pressão migratória verdadeiramente preocupante.

Em quarto lugar, a questão da resposta eficaz e global quer ao problema do funcionamento do sistema financeiro europeu quer à questão da harmonização fiscal.

Em quinto lugar, a construção de uma efectiva uma cidadania europeia que possa dar resposta e consistência política ao processo de aprofundamento da integração. Não encontrei, todavia, como já aqui tive oportunidade de dizer,  no Livro Branco da Comissão Europeia resposta a qualquer um destes problemas.

Mas estes são, de facto, os grandes problemas com que a União se confronta hoje. E a minha pergunta é muito simples: por que espera a liderança europeia para lançar um intenso combate político em defesa da União Europeia? Porque só com este combate – o combate decisivo aos que, cada vez mais e com maior arrogância, levantam a voz contra a União – poderá ganhar a difícil batalha que tem (temos) pela frente. Até no nosso país, quando duas forças que sustentam politicamente a actual solução governativa levantam, alta, a voz contra a União! De resto, este combate decisivo exigiria, por si só, uma clarificação de posições acerca das soluções para a União. Ou será por isto mesmo que a liderança europeia não o desencadeia? Na verdade, os personagens que têm andado por lá não nos confortam muito com os seus currículos! Que trave, pois, a cidadania, este combate!

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