A gentrificação, “uma palavra suja” que agrava o desalojamento e a segregação residencial, é retratada ao Tornado pelo geógrafo Luís Mendes, investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa. “A habitação não é hoje vista como um direito do Estado Social mas como mero activo financeiro”, diz. O académico e coordenador do movimento “Morar em Lisboa” fala da viragem neoliberal nas políticas urbanas e recorda os últimos dados do Banco Nacional de Arrendamento: “em média, são despejadas por dia cerca de 5,5 famílias, em todo o país”
Jornal Tornado: Em Lisboa e Porto, as rendas podem triplicar nos próximos dois anos. Na capital, desde 2013, a freguesia de Santa Maria Maior, por exemplo, perdeu quase dois mil habitantes. Há ordens de despejo que afectam várias famílias residentes nos bairros populares sem possibilidade de suportar o aumento das rendas. Como vê esta realidade que dita a expulsão dos mais desfavorecidos dos centros históricos?
Luís Mendes: Lisboa está a viver um pico de projecção internacional enquanto destino turístico, ao mesmo tempo que o seu mercado de habitação adquire formatos de activo financeiro e atrai dinâmicas globais de procura e de investimento estrangeiro. Este processo foi alavancado por programas governamentais do anterior governo durante o período da austeridade e pela viragem neoliberal na política urbana, esta última desde já o início do século XXI. Estes factores fomentaram a atracção de uma procura global e transnacional, colocaram o mercado de habitação lisboeta no mapa-mundo e favoreceram a financeirização do imobiliário e a reestruturação urbana na capital portuguesa. A habitação não é hoje vista como um direito do Estado Social mas como mero activo financeiro que serve a reprodução de capital através da especulação imobiliária e produção de mais-valias.
O processo de gentrificação em curso…
Sim, assiste-se também a uma gentrificação turística, mediante a transformação dos bairros populares e históricos da cidade centro em locais de consumo e turismo, pela expansão da função de recreação, lazer ou alojamento turístico/arrendamento de curta duração que começa a substituir gradualmente as funções tradicionais da habitação para uso permanente, arrendamento a longo prazo e o comércio local tradicional de proximidade, agravando tendências de desalojamento e segregação residencial.
Os bairros são esvaziados da sua população original ou impede-se a população de baixo estatuto socioeconómico de aceder à habitação nessas áreas, colocando em risco a resiliência do centro histórico. Contudo, o turismo e a expansão do alojamento local parecem-me agora factores secundários e conjunturais face a factores mais estruturais como as forças globais das geografias do investimento de capital.
A habitação não é hoje vista como um direito do Estado Social mas como mero activo financeiro que serve a reprodução de capital através da especulação imobiliária e produção de mais-valias”
Explique-nos como surgiu o termo gentrificação.
Gentrificação que é uma buzzword recente em Portugal, na verdade, é uma palavra suja e tem já meio século noutras cidades do mundo desenvolvido como Londres, Paris ou Nova Iorque e designa um processo de atracção de capital privado e novas populações endinheiradas para bairros tradicionais dos centros históricos, durante muito tempo alvo de desinvestimento e de avançado estado de degradação e conservação. Esse investimento requalifica os bairros produzindo uma regeneração urbana a nível económico, cultural e ambiental, o que acaba por encarecer os preços fundiários e imobiliários. Perante esta subida dos preços de arrendamento e para habitação de casa própria, as classes populares, que residem nestes bairros inicialmente, vêem-se incapazes de suportar estes custos e são obrigadas a sair. Falando de uma forma simplificada e genérica: entram os ricos e saem os mais pobres e vulneráveis destes bairros populares.
Quando começou o fenómeno em Portugal?
A gentrificação é um dos processos mais fortes de mudança urbana no mundo actual e tem-se agudizado nos anos recentes, sobretudo em Lisboa e Porto. Em Portugal, começou nos anos 80 por ser um processo local e relativamente marginal que afectava apenas alguns fogos ou imóveis (se tanto) isolados e dispersos no centro histórico. Geograficamente, era um processo fragmentado. Os novos moradores apreciavam o património, a arquitectura, o ambiente cosmopolita e diverso dos bairros históricos, sendo estes os principais factores para a tomada de decisão de residência no centro da cidade, a par, obviamente, da excelente localização e da proximidade de serviços e oferta cultural. Não existia desalojamento com os contornos a que hoje se assiste, pois muitos dos imóveis renovados já se encontravam vazios ou em avançado estado de degradação, e o congelamento das rendas não permitia a expulsão dos inquilinos. Falava-se de gentrificação marginal. Designei-a de “gentrificação embrionária” para o caso português.
Entretanto, alastrou e agigantou-se.
Actualmente, e a partir do início do século XXI, o processo de gentrificação em Lisboa expandiu as suas fronteiras. A escala e extensão, as modalidades de oferta, os agentes e protagonistas do processo, em tudo mudaram. A gentrificação tornou-se madura e afigura-se com contornos mais agressivos, o que implica desalojamento dos mais pobres e uma perspectiva da habitação esvaziada da noção de direito, para ganhar o estatuto de mero activo financeiro para atracção de investimento estrangeiro.
Tendo-se sobretudo a cidade de Lisboa tornado num destino de procura internacional do imobiliário, a subida dos preços acompanha os rendimentos médios dessa procura que são muito elevados comparativamente aos nacionais e excluem o português médio da possibilidade de aquisição de habitação em Lisboa. Portanto, a questão já não é apenas a do desalojamento directo, que implica expulsão das pessoas das suas casas e bairros, negando-lhes o direito à habitação e ao lugar, mas é também uma questão de desalojamento indirecto, porque se está a impedir ou a negar o acesso dos grupos mais vulneráveis a esse lugar, ao mesmo tempo que se abre o caminho para permitir que os grupos mais favorecidos o possam fazer.
A gentrificação tornou-se madura e afigura-se com contornos mais agressivos, o que implica desalojamento dos mais pobres e uma perspectiva da habitação esvaziada da noção de direito”
As 1100 casas anunciadas pela CML a preços acessíveis são uma medida importante, mas não trava os despejos que todos os dias ocorrem”
A lei do arrendamento urbano é uma das causas directa desse processo?
Comumente tem-se considerado que a gentrificação que se verifica no centro histórico da cidade de Lisboa resulta directamente da expansão do Alojamento Local e que reside na conjugação de uma série de elementos decisivos. Contudo, em boa verdade, esta mudança revela causas mais profundas e estruturais do que as que têm sido divulgadas.
Tais como?
Começou com uma viragem neoliberal nas políticas urbanas desde 2004 (criação das sociedades de reabilitação urbana), com a aprovação de uma série de pacotes de leis que foram surgindo sucessivamente defendendo uma visão pró-mercado no que respeita à habitação, favorecendo a iniciativa privada, as parcerias públicas-privadas e a competitividade no sector. Esta viragem neoliberal culminou com a aprovação da Nova Lei do Arrendamento Urbano em 2012, em conjunto com a simplificação da Lei do Alojamento Local em 2014, com os pacotes para atracção de investimento estrangeiro, tais como o regime fiscal muito favorável para os Residentes Não Habituais (já desde 2009) e para os Fundos de Investimento Imobiliário, bem como com o programa dos Golden Visa ou Autorização de Residência para Actividade de Investimento, e ainda com o regime excepcional e temporário da reabilitação urbana de 2014, no sentido da agilização e dinamização, flexibilizando e simplificando os procedimentos de criação de áreas de reabilitação urbana e de controlo prévio das operações urbanísticas. Acrescente-se ainda a liberalização dos usos do solo operada pela Câmara Municipal de Lisboa em 2012 durante a revisão Plano Director Municipal de Lisboa.
Todo este quadro criou um contexto fiscal e legal que facilitou imenso a financeirização do imobiliário, forma acabada de acumulação e reprodução do capital no ambiente construído; bem como os despejos, tendo agravado o desalojamento e a segregação residencial.
Não há aqui nenhuma teoria da conspiração! O governo anterior deu um impulso forte à gentrificação, mesmo que de forma, a meu ver, não intencional, pois, em pleno período de crise económica e de forte austeridade, e na necessidade urgente de atracção de investimento internacional, promoveu leis que são responsáveis pelo avanço do processo.
Especificamente, o que desencadeou o Novo Regime de Arrendamento, apelidado por alguns inquilinos, por “lei dos despejos”?
O Novo Regime de Arrendamento, promulgado em 2012, imposto pela Troika e subordinado aos interesses da propriedade, veio liberalizar ainda mais o arrendamento, aumentar o poder dos senhorios, actualizar excessivamente as rendas e facilitar os despejos, levando à expulsão de muitos habitantes e ao encerramento de actividades económicas, sociais e culturais, como o comércio tradicional, associações e colectividades.
O direito à cidade
Como classifica as actuais políticas de gestão da capital e dos seus espaços urbanos no momento em que o turismo é a “galinha dos ovos de ouro”?
Quer a Câmara Municipal de Lisboa (CML), quer o actual Governo Central, que durante muito tempo pareceram dormentes, têm-se, finalmente, demonstrado atentos ao que se está a passar no centro histórico de Lisboa, até porque diversos movimentos locais, como as comissões de moradores, associações de bairro, organizações não governamentais, meio universitário, assim como a sociedade civil e a opinião pública, com o apoio da comunicação social, se têm manifestado, de forma a que se comecem a tomar medidas que mitiguem a intensa turistificação e os despejos que se registam.
Mas os despejos continuam a aumentar.
As várias medidas até agora tomadas são uma condição importante para manter uma estrutura residencial e comercial sustentável e resiliente nos bairros históricos, mas não suficientes se não forem articuladas estruturalmente com uma política de habitação justa que garanta o direito à cidade. Só por via da fixação da população nos bairros, valorizando a função de residência permanente e não a de alojamento turístico ou short-rental e apenas apartamentos de luxo, estaremos a garantir uma procura constante que mantenha vivo o comércio local e a própria vida social nestes bairros. Os bairros devem ser espaços de mistura social e funcional! As 1100 casas anunciadas pela CML a preços acessíveis são uma medida importante, mas não trava os despejos que todos os dias ocorrem.
O que propõe como medidas urgentes?
A CML devia agilizar o desbloqueio das casas vazias, com penalização fiscal dos proprietários que as mantenham desabitadas e devolutas e penalizar o investimento especulativo, criando novos impostos de propriedade que agravem punições sobre os espaços desocupados.
Existem várias medidas que devem ser adoptadas neste momento para mitigar os impactos de uma gentrificação pelo turismo e que passam por adoptar uma política de cidade que se faça de uma reabilitação urbana para e pelas pessoas, ao mesmo tempo que se combate a especulação imobiliária e promove o mercado social de arrendamento; ao invés do investimento em edifícios emblemáticos de grande projecção internacional ou de uma política de regeneração urbana única e exclusivamente cativa das dinâmicas predatórias do grande capital imobiliário, ao abrigo da contínua financeirização do mercado de habitação.
O município, que dispõe de um vasto património imobiliário em toda a cidade, deve requalificá-lo e mobilizá-lo para uso afecto de bolsas de arrendamento a custos controlados, regulando o mercado imobiliário, limitando os custos do arrendamento residencial tradicional, garantindo uma oferta habitacional a preços acessíveis, sobretudo para os mais vulneráveis.
Tudo isto na linha do projecto já existente da criação de bolsas territoriais – conjuntos de fogos municipais todos localizados numa mesma área ou bairro, aos quais se podem candidatar os interessados em residir nessa zona da cidade, no âmbito do Regulamento do Regime de Acesso à Habitação Municipal, mas privilegiando o realojamento local dos moradores expulsos ou alvo de desalojamento, todavia, oriundos do bairro em questão. Assim, podia-se intensificar a reabilitação urbana de propriedades/edifícios de propriedade municipal ou estatal para uso como residência temporária para populações vulneráveis ou entretanto desalojadas.
Se a expropriação é ainda uma questão tabu em Lisboa, o exercício do direito de preferência já não parece ser. Deste modo, devia-se averiguar a possibilidade de exercício de “direito de preferência” da CML que, nos termos da lei, tem preferência na aquisição de alguns imóveis.
A “disneyficação” dos bairros históricos
De acordo com os últimos dados do Banco Nacional de Arrendamento, os despejos duplicaram desde 2013 e, em média, são despejadas por dia cerca de 5,5 famílias, em todo o país”
A turismofobia alastra por várias cidades europeias. As manifestações anti-turistas correm o risco de se intensificar em Lisboa?
Percorrendo as ruas de Lisboa deparamo-nos pontualmente com alguns slogans ou frases feitas mas repara-se que as mensagens dirigem-se sobretudo aos grandes grupos e agentes com responsabilidade na gentrificação e turistificação da cidade, como as agências imobiliárias, plataformas de alojamento turístico como o “airbnb”, ou até a autarquia de Lisboa, entre outros.
Considero que não existe turismofobia nem risco de tal acontecer em Lisboa ou Portugal. As frases e expressões grafitadas nas paredes de Lisboa revelam na verdade algum tipo de xenofobia dirigida ao turista, mas dizem respeito sobretudo aos impactos que o excesso turístico provoca na vida das comunidades dos bairros históricos e não apresentam nenhum princípio de causar terror ou amedrontar, mas sensibilizar a opinião pública e a sociedade civil. São sintomáticas de algum mal-estar social que se vive, porque, na opinião de activistas e habitantes destes bairros, o fenómeno parece estar a atingir limites que comprometem a carga turística destes espaços e a sustentabilidade da qualidade de vida urbana.
A descaracterização do centro histórico é cada vez mais intensa, com a “disneyficação” dos bairros históricos e a destruição e desmembramento de relações sociais entre antigos moradores da comunidade”
“Lisboa menina e moça menina/Da luz que os meus olhos vêm tão pura”. E vista pelos seus olhos, a capital está a perder autenticidade, pureza, identidade?
A questão da genuinidade e autenticidade dos bairros tradicionais é polémica, porque parece que sempre que se invoca a identidade e memória urbanas destes espaços se está a defender um saudosismo e regresso ao passado e uma aversão à modernização e ao progresso, o que de todo não é verdade. O que se defende é que a relação entre modernidade e tradição que tão bem sempre caracterizou Lisboa se mantenha equilibrada. A observação empírica revela, contudo, que a descaracterização do centro histórico é cada vez mais intensa, com a “disneyficação” dos bairros históricos e a destruição e desmembramento de relações sociais entre antigos moradores da comunidade, atingindo a identidade e memória destes espaços, aspectos que são, por sua vez, um dos fortes atractivos para a chamada dos turistas a Lisboa. A proliferação de serviços e comércio sofisticado, única e exclusivamente para agradar ao turista, “urbanaliza”, porque massifica e torna igual, o que acaba por tornar indistintas as características tipicamente associadas ao comércio local. Deixa de ser distinto e portanto de valor como factor de atractividade turística. Era importante que certos políticos na CML e na Assembleia da República descessem à realidade e falassem com moradores e com os próprios turistas para lhes sentirem o pulso…
- Nos últimos 6 anos, os preços da habitação para arrendamento aumentaram entre 13% e 36%, e para aquisição subiram até 46%, consoante as áreas da cidade, de que resulta, estima-se, uma taxa de esforço com a habitação situada entre 40% e 60% do rendimento familiar, quando os padrões comuns aconselham uma taxa de esforço até 30%.
- Na capital, desde 2013, a freguesia de Santa Maria Maior perdeu quase dois mil habitantes. Isto dá mais de um habitante por dia, nos 4 anos que vão de 2013 a 2017. O despovoamento não é um fenómeno recente no centro histórico de Lisboa, sendo que os registos estatísticos do INE indicam que esta sangria demográfica se iniciou nos anos 40 do século XX, onde residiam 160 mil habitantes, residem agora 40 mil. Este processo durante o século passado relacionou-se sobretudo com a expansão da suburbanização e consequente formação da Área Metropolitana de Lisboa.
- O último recenseamento populacional de 2011 não capta a perda populacional nos últimos anos agravada pelos despejos da nova lei das rendas de 2012 nem o impacto do Alojamento Local no mercado de habitação local. O número de desalojamentos recentes no centro histórico de Lisboa é desconhecido, até pela falta de estudos de diagnóstico que comprovem o que parece ser uma evidência clara para o investigador Luís Mendes, mas invisível aos olhos da opinião pública e sociedade civil. Várias associações falam no conhecimento de centenas de casos nos últimos anos, sobretudo nas freguesias centrais de Santa Maria Maior, Misericórdia e São Vicente, o que num universo de residentes de alguns milhares é bastante significativo, tratando-se, ainda para mais, de populações vulneráveis e em risco social.
- Perante um cenário de rendas cada vez mais altas, aliado ao facto de os salários serem baixos para a maioria dos portugueses, o número de despejos disparou. De acordo com os últimos dados do Banco Nacional de Arrendamento (BNA), os despejos duplicaram desde 2013 e, em média, são despejadas por dia cerca de 5,5 famílias, em todo o país.
- Segundo os dados do Ministério da Justiça, o número de pessoas despejadas em 2016 foi 91,7% superior ao número contabilizado três anos antes, o que pode sugerir evidência das dinâmicas descritas. Nesta matéria, este fenómeno continua a ser um buraco negro em Lisboa. O geólogo defende que as Juntas de Freguesia, com a ajuda de recursos técnicos, humanos e financeiros da Câmara Municipal, podiam avançar com um cadastro de levantamento aproximado do número de desalojados, bem como dos edifícios devolutos, com apoio das redes de vizinhança.
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