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Quarta-feira, Dezembro 25, 2024

Nós, os bárbaros

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Historiador, Professor Universitário; investigador da área de Ciência das Religiões

Tenho escrito – e feito conferências, palestras, intervenções em congressos, seminários e em aulas – sob o pesado guarda-chuva intelectual daquilo que resolvi agregar, com cada vez maior certeza, sob a designação de ‘uma filosofia do impuro’ (filosofia no sentido de estudo de problemas fundamentais relacionados à existência e impuro, sim, pela negação do atrevimento de aceitar ser possível a pureza nos nossos dias falho de genuinidade) .

É que nenhuma das nossas ideias, nesse sentido de interpretação, é finalmente de “raça” apurada. Nem existe um só pensador que o seja. Somos filhos de Hybris – figura do pensar que nos nossos tempos resultou na palavra abrangente hibridismo, mas que na raiz grega é exactamente o desmedido (e o que não medimos na contemporaneidade tende a soterrar-nos).

Sendo eu da História – a História é sempre sobre evidências – e da História das Ideias (onde não escamoteamos a base documental mas aceitamos que em cada ideia há tanta verdade como surpresa narrativa, disposição imaginativa e muito individualismo.

Tomámos como certo o ser herdeiros de uma cultura judaico-cristã, mas ao fazê-lo esquecemo-nos de que desse modo temos parentes noutras localidades e influências mais remotas e decisivas. Aliás, somos a ponta final de muitas histórias de embalar – e um dia destes os nossos netos contarão versões dos nossos enredos e provavelmente nem se lembrarão das teias que gerámos (para nós e para eles).

Diria, nessa medida, que descendemos de uma mistura entranha que combina os genes de Apolo, deus regrado e moderado e de um bêbado incorrigível (que começando como Dionísio acabou na farra, como Baco). Somos essa dualidade – do formal ao festivo. Ontem, como hoje.

Leonardo da Vinci - O Homem Vitruviano
Leonardo da Vinci – O Homem Vitruviano

Somos Homem do fabricar e do exceder – Homo Faber e, no oposto, o Homo Ludens. Mas desaprendemos uma felicidade que gregos – e os romanos, que neles tanto se inspiraram – cultivavam: deixámos a pluralidade dos deus e da tolerância e sofremos a terrível marca do monoteísmo – com egípcios, judeus, cristãos, muçulmanos, em suma, com o universalismo da intolerância. O proselitismo (cristão e islâmico) acentuou essa dureza, essa incapacidade de fazer escapar o homem à vontade de um deus.

Da pluralidade – que garantia a pureza das diferenças – a convergência impôs a impureza. Mas como alguém disse – finjo não saber que foi Edgar Morin – “talhamos deuses que nos talham”.

Li durante os últimos dias duas inverdades repelentes. Numa, alguém procurava defender o nazismo por ter – e cito – assassinado menos pessoas que o comunismo. Como se os pratos das balanças humanas justificassem uma só morte que fosse no inventário. Não há comparação – nem é legítimo comprar a imbecilidade humana, só para defender pontos de vista primários.

A segunda afirmação é infantil: que o nazismo terá nascido do marxismo. É a cultura da banda desenhada norte-americana do pós guerra? Uma leitura de Trostski, de Souvarine ou de Hanna Arendt, mesmo apressada e só para dar três bons exemplos, teria ajudado a ignorância a não se manifestar.

Acho que o erro veio daquela expressão trágica, o nacional socialismo, mas ir à escola faz bem e é um exercício que depois de ser salutar deixa benefícios para a vida e só indo à escola se percebe o significado desse nacional e desse socialismo e de uma série de tantas outras coisas que apenas os alunos aprendem e, aprendendo, aplicam nas suas vidas futuras.

Nós, os bárbaros, isto é, os que não falamos línguas impostas mas estamos sempre aptos a novas expressões e ensinamentos, ficamos no pântano do impuro à procura de evidências. Já agora, esta expressão Bárbaros é racista.

Provém (como tantas outras coisas) do grego antigo e era usada com o significado de estranho ou ignorante de um modo depreciativo. Resgatando-a, não me importo de a usar sob o meu chapéu de chuva da filosofia do impuro. É que me conforto mais como estranho e ignorante do que do lado dos opinativos sábios que desconhecem o mundo tal como foi, é e provavelmente virá a ser.

Este texto respeita as regras do AO90.

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