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João de Sousa

Domingo, Dezembro 22, 2024

Quem nos roubou a música?

Mendo Henriques
Mendo Henriques
Professor na Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa

Português(a) que não goste de fado, bacalhau e praia enganou-se na porta de entrada do país. E melhor ainda: dei comigo a cantar, aliás, toda a assistência cantou.

Afinal era o Zeca Afonso, o Adriano, o Alegre, o Camões e as clássicas de Coimbra que conhecemos. E juro como a canção: tem saudades de Coimbra mesmo quem lá não viveu. Eu tive.

Depois a música acabou. Àquele sábado seguiu-se a semana que recomeçou.

Claro que música não falta, na rádio ou nos cd’s do automóvel pois dar tempo de antena a falas de gente destrutiva é receita para a desgraça. Nem falta quem use os ipods com que a humanidade já iniciou o caminho para ser cyborg. Nem falta cantarolice. Mas isso é música para o eu. Para massajar o cérebro. Não é música para o nós. Música é coral.

Cantei nos coros dos autocarros de férias. Cantei nos coros do colégio. Cantei nos serões do Alentejo. Cantei nos coros da família e dos amigos. Cantei nos concertos. Cantei nas missas. Depois veio a universidade – e como era Lisboa e não Coimbra, lá está – deixei de cantar. (Uma das ambições da minha vida é ser estudante honorário de Coimbra). Como não canto na casa de banho, resta-me o estereotipado “Parabéns a você”, possivelmente a melodia mais chunga jamais inventada para o evento mais belo da vida.

“Deixem-me compor as músicas de uma nação, e não me interessa quem faz suas leis”.

Que grande verdade! E mude-se nação para comunidade e fica perfeita. A música é para ser coral. A música é para ser a festa de quem somos. Quem mais sabia disso era o Zeca Afonso, o trovador da nação. Não conheço uma pessoa que desgoste dele. Porque ele não cantava apenas: o Zeca fazia despertar o cantor que há em nós. É isso o coral.

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Sim. Sei que morreram recentemente o Prince. E o David Bowie. E mais alguns. Mas não é a mesma coisa. Sobretudo para quem não nasceu a ouvir o Prince, o Bowie e esses mais alguns. Que são só de alguns e não partilhados por todos. E a música ou é para todos, ou não é tudo. Um que fique fora do coro, e não é mesma coisa. A música é inclusiva.

É assim porque a música tem pouco a ver com ideologias e tudo a ver com afectos. “Giovinezza, giovinezza, primavera di beleza” tornou-se o hino fascista, depois de ser uma canção de estudantes de uma opereta italiana. Mas é uma maravilha de ouvir. “Bella Ciao” era a bela canção da resistência anti-fascista italiana, dos Partigiani. Creio que até o parvalhão do Berlusconi a cantava. Mas quem liga a isso quando canta em coro? Quem liga a este mundo cão quando se entra no outro mundo?

Quem nos roubou a música?

A culpa não é da falta de melodias. Nem dos ipods, smartphones, cd’s e net. Nem das vozes afinadas. Nem do rock in rio, da festa do Avante, ou de concertos selectos com gravata e vestido comprido. Nem de letras no vagalume, ou no letras.com. Não me parece que seja por nada disso. Parece-me que é outra coisa, outra causa.

Roubou-nos a música quem nos roubou a juventude, ou melhor quem roubou a metafísica da juventude, e a entregou aos computadores e aos big data, aos macdonald e sei lá que mais. Roubou-nos a música quem nos roubou os sonhos de um mundo melhor, a utopia, e os ideais. Roubou-nos a música quem nos roubou a luta, o inconformismo e a vontade de mudar. Esses roubaram-nos a música. Ou fomos nós?

O roubo da música é mais grave que todas as crises do mundo, incluindo a bancária, a fiscal, a da saúde e a da educação e o que mais se considerar. Quem já não canta em coro, já não vive em coro, nem nada. Arrasta-se com as tristes canções dos bandidos que nos violaram.

Saí daquela noite de fados de Coimbra a sentir tudo o que perdi, tudo o que perdi dos meus coros de antanho. Deixei que me roubassem a música. Não aceitem que vos roubem a música. Incendeiem a cidade com os Cantares de Andarilho, com o que vos der na real gana desde que seja a gana das músicas de uma nação.

“Somos filhos da madrugada…Pelas praias do mar nos vamos”. Não se deixem roubar!

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