Não há nenhuma maneira de conferir uma base científica a esta abordagem, pois cultura não é ciência e o entendimento da alma de um povo sequer se pretende racional, no comum sentido do termo. Mas este é um dos caminhos possíveis, e devemos compreendê-lo mais como um desafio do que como um saber adquirido. Como dizia alguém, o caminho faz-se caminhando.
História de Portugal
Creio que caracteriologicamente temos, desde sempre, nós os portugueses, uma abertura mental ampla, multidimensional. Herdamos o nosso ADN de duas fontes: a Árabe, com a sua cultura de espaços de infindável vastidão (lembremos Spengler), construída sobre os alicerces dos seus desertos e horizontes sem fim, e de civilizações antigas, como a Celta, que moldaram o nosso cristianismo com um sabor místico e universalizante (ao contrário da Espanha, aprisionada na inquisição, estreita e gelada). Esta disposição encontra-se logo em Afonso Henriques, que sempre procurou um entendimento com os árabes e com eles terçou alianças, que em nome da sua visão do mundo e do futuro do seu condado se opôs às fúrias sanguinárias dos cruzados, tendo chegado a pagar-lhes para não chacinarem os vencidos nas conquistas alentejanas e os deixarem com os seus haveres.
Lembremo-nos que logo nos nossos primórdios a organização do Reino, ao assentar nos municípios e com larga autonomia local nos proporcional uma estrutura de poder bem diferente de outras leituras feudais, com um Rei mais forte e uma nobreza menos poderosa, dando ao povo a oportunidade de uma visão mais abrangente das questões locais e regionais e não estritamente local como ocorria com outros povos europeus, mormente na Europa de Leste, onde imperava a servidão.
Abrir Portugal ao mundo
O primeiro dos nossos antigos que, após Afonso Henriques, mostrou este espírito foi D. Dinis, que abriu Portugal ao mundo do espírito, à modernidade de então e a uma relação com o povo que, sendo medieval ainda, era todavia moderna e arrojada, voltada para a cultura e o saber (Coimbra) e para o desenvolvimento do interior, revolucionando a agricultura e dando a primeira grande estrutura construída ao país, com o pinhal de Leiria. Abriu também as portas ao mundo exterior, à Europa de então, via Londres e Bruges e oferendo, assim, novos e amplos horizontes a um país pobre, semi-despovoado e isolado do mundo de então pelo mar infinito e assustador e a futura Espanha.
Com incontáveis mudanças de rumo táctico mas com uma visão cada vez mais consolidada e convicta, a superação do impasse estratégico do país tendia a corresponder ao mais profundo da alma portuguesa: os caminhos terrestres estavam bloqueados, os meios eram escassos, a população reduzida, pelo que a saída só podia ser a mais improvável – a vastidão infinita do mar, procurando nele caminhos que de outro modo não seriam alcançáveis, segundo uma estratégia de união em rede de múltiplos mares e múltiplos comércios.
Irmãos Duarte
O terreno fora antes preparado pelos irmãos Duarte, Henrique e Pedro. D. Henrique era um homem medieval, com um cristianismo tradicional e insensível, vontade e disciplina de aço, mas mesmo assim com uma compreensão da importância do saber que ultrapassava as limitações da cultura medieval. E os seus dois irmãos eram homens de visão e futuro conformes a um estar amplo no sentido espacial e aberto no sentido mais histórico do termo. A partir deles e, mais tarde, com Vasco da Gama e com Albuquerque, nasce essa noção radical de um Império que o não era: tratava-se de um Império marítimo, menos de posse do que de controlo e, com base no comércio e na miscigenação como condição de sobrevivência – e esta dimensão é única, por oposição aos demais Impérios de seiscentos e setecentos, essencialmente territoriais.
Conquista de Ceuta
É interessante notar-se que, com a conquista de Ceuta (a mortandade foi terrível, era a faceta do espírito de cruzada que o impunha) a reacção dos reinos europeus de centro e de leste foi de risada, espanto e incompreensão. Para a Europa de então a estratégia óbvia era a da conquista de territórios aos muçulmanos onde eles dominavam o comércio internacional que importava, ou seja, o Norte / Sul (o ouro de África) e o Leste / Oeste (as especiarias), pelo que os alvos eram o Mediterrâneo e as terras que o entornavam a sul e a leste. A iniciativa dos pobres e insignificantes portugueses não fazia qualquer sentido. Porque uma estratégia marítima era impensável.
A Inglaterra aprendeu connosco e assim conquistou a Índia como um território de saberes, cultura, tradições, que lhe permitiu, depois, dominar o comércio da Ásia. Lembremos que os Impérios anteriores, incluindo os grego e romano, eram Impérios de ocupação e rapina, sem absorção de saberes e culturas locais, apenas com a disseminação de línguas e culturas.
Essa Visão ampla e multivariável adaptou-se, na forma, aos tempos que foram evoluindo, mas teve um hiato terrível quando, com D. João III, triunfou a Igreja medieval e inquisitorial. Portugal perdeu, aí, a sua alma, e não mais a recuperou senão a espaços e via homens e mulheres que souberam representá-la.
Construção do Império
Após D. João III, o que constituía a essência da nossa natureza foi reprimido e passou ao mundo do inconsciente, daqui uma mudança de plano.
Recordemos que com D. João II iniciamos a construção do Império que o tempo pedia, o marítimo, juntando o Atlântico ao Índico (o Pacífico ficava demasiado fora do nosso alcance logístico). Com o colapso do Império marítimo, sobrou-nos África e o Brasil. Quando o ethos se tornou inconsciente, o medievalismo dominante optou pelo Império territorial, o que era então possível, mas esse mesmo ethos moldou-o de modo único: o Brasil, na sua imensidão e nas suas planícies intermináveis, satisfazia a ânsia de espaço e vastidão, mas era um Império terreno.
Um país fora do tempo
Só que o espírito não era o da época e, ao contrário do que ocorreu com os demais impérios por toda a parte, não se dividiu com a independência e ficou com a marca perene de país do futuro. O seu espírito foi marcado pelo Padre Vieira, que vislumbrou a sua outra imensidão, como que a expressão do que Portugal tinha de ser, e mostra-se hoje, na sua confusão, como um país de algum modo fora do tempo, eternamente adiado, mas que se vislumbra na sua literatura (Guimarães Rosa, que dizia por um dos seus personagens quase página sim página não essa frase extraordinária “viver é muito perigoso”), que se fez independente com outro intemporal príncipe Pedro, que se elevou com um Visconde de Rio Branco e tem a mais extraordinária música popular do mundo.
Na queda Portugal teve o seu profeta, Camões, que separou os tempos entre os dois impérios e uniu passado e futuro, complementado, pouco depois, por Vieira, mesmo que num outro registo, onde a mística muda de forma e a estratégia anterior se restringe agora aos corredores do poder, ao púlpito e à demanda de justiça.
Portugueses universais
Desde sempre que os portugueses foram pouco dados a visões especializadas e fracos em tudo quanto respeita ao espírito do tempo que corre. Foram brilhantes quando foram capazes de serem maiores do que eles mesmos, ou seja, quando foram universais, vivendo e representando em si o mundo humano, nas suas dimensões de amplitude e multiplicidade.
Ele é o espírito que desperta. Matou-se porque não suportou o fardo. Mas rendeu-o o Agostinho da Silva, e outros grandes homens e mulheres deram continuidade ao nosso ethos, mesmo que de modo tantas vezes incompleto e isolado. Na política Guterres e, até certo ponto, Sampaio e Adriano Moreira. Na Arquitectura, o Souto de Moura e o Siza, na Cultura o Eduardo Lourenço, na literatura o Saramago, na música a Amália, no cinema o Manoel Oliveira, na filosofia o António de Macedo e o Sampaio Bruno, na Neurologia o Damásio (caso interessante, pois esta ciência é uma daquelas em que todo o nosso ethos está preenchido), na pintura a Vieira da Silva e talvez o Sequeira. Há grandes homens a aparecerem nas novas tecnologias, que vão dar cartas, decerto, nos próximos anos.
Luís Jorge Monteverde | Consultor de Gestão