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Domingo, Novembro 24, 2024

Nova Iorque: expulsão dos operários e especulação imobiliária

Como os barões imobiliários e os banqueiros de investimento planejaram o fim da classe trabalhadora de Nova York.As ruas de East New York convivem com salões de beleza e quitandas – e em breve, terão um enorme complexo de escritórios.

Funcionários públicos de Nova York planejam uma revisão intensiva da área em torno da estação ferroviária da Broadway Junction, no Brooklyn, e um espaço para escritórios será peça central desse plano de revitalização. “Trazer espaços de escritórios modernos para o leste de Nova York ajudará a impulsionar seu crescimento contínuo como um centro de trabalho e trazer centenas de novos empregos no setor privado para o bairro”, disse James Patchett, presidente da Corporação de Desenvolvimento Econômico. Esta é uma música que os novaiorquinos conhecem bem.

Há vinte e cinco anos, as origens ocultas deste “vício” na construção de escritórios em Nova York foram reveladas pelo jornalista radical Robert Fitch no livro clássico The Assassination of New York (O assassinato de nova York). Nova York, escreveu ele, teve uma economia industrial diversificada e, portanto, era um lugar onde as pessoas de todas as classes podiam viver e trabalhar. Mas, ao longo do século XX, as elites da cidade não diversificaram esse perfil. As indústrias foram substituídas por escritórios, com o objetivo de elevar o preço dos terrenos. Por quê? Porque as elites da cidade eram donas dos terrenos.

Nova York costumava ser um lugar onde pescadores, costureiras e trabalhadores portuários viviam a poucos passos de gente como os Rockefeller. Os ricos e suas instituições patriciais vigiavam atentamente contra os proletários que ainda preferiam viver em Nova York, observa Fitch.

As elites da cidade se uniram na década de 1920 para criar um plano e afastar os trabalhadores. O fator decisivo foi o preconceito e a busca do lucro: a terra ocupada pela classe trabalhadora era muito valiosa. Um economista – que na época trabalhava para os Rockefeller, Roosevelts, Morgans, Pratts e vários ricaços donos de ferrovias e bancos – escreveu:
Algumas das pessoas mais pobres vivem em favelas localizadas em terrenos de alto preço… Era uma situação ultrajante para o senso de ordem. Tudo parecia estar fora de lugar. Os ricos anseiam por reorganizar e colocar as coisas nos lugares a que pertencem”

O plano de 1929 formulado por poderosos interesses, atuando através de um órgão chamado Associação de Planejamento Regional (RPA), envolveu um rezoneamento completo de Manhattan: o distrito de oficinas de costura, os matadouros, e o mesmo o porto – que era um dos melhores do mundo. Em seu lugar, surgiriam prédios de escritórios e casas de luxo para os profissionais que ali trabalhariam, e isso renderia aluguéis exponencialmente maiores para os capitalistas, donos das propriedades que poderiam ser vendidas a preços cada vez mais surpreendentes.

Este plano não se desenvolveu imediatamente. Na verdade, durante mais de meio século – de 1899 a 1956 – viviam em Nova York 15% dos trabalhadores da indústria de todo o país. “Então, muito antes do país como um todo começar a ser afetado pela desindustrialização”, escreve Fitch, “Nova York começou a hemorragia severamente”.

Ao longo das duas décadas seguintes, Nova York perdeu um quarto de milhão de empregos industriais. Ao mesmo tempo ocorria a expulsão da classe trabalhadora, e a soma dos valores dos terrenos na cidade pulou de US$ 20 bilhões para US$ 400 bilhões.

No final da década de 1920, os arquitetos do plano RPA começaram a construir em velocidade vertiginosa espaços de escritórios no centro de Manhattan. Eles foram forçados a diminuir o ritmo durante a Grande Depressão, mas deram início às bases dessa mudança. E criaram uma Comissão de Planejamento Urbano, que não seria eleita e, portanto, não temia violar a vontade do público. ”O verdadeiro significado da Comissão”, afirma Fitch, é que tirou o planejamento público de qualquer órgão eletivo responsável… permitindo que agências de planejamento privado – como o RPA – e até empresários privados e seus propagandistas definissem a agenda de planejamento e enquadrassem o debate público”

Este trabalho preparatório foi útil na década de 1950, quando os capitalistas locais intensificaram os esforços para afastar as indústrias da cidade. Fitch observou que os Rockefeller haviam acumulado um pequeno império na periferia do Rockefeller Center, e se depararam com bolsões industriais. Então, foi feito um estudo do RPA – com a ajuda de Harvard – que indicou condições econômicas favoráveis para uma extravagância de construção de edifícios de escritórios.

Com essa informação, novos grupos de lobby e associações de bairro se formaram para representar os interesses dos empresários e das grandes imobiliárias, incluindo os principais bancos. A recém-criada Downtown Lower Manhattan Association, por exemplo, era um “time dos sonhos da capital financeira dos EUA”, com representantes de bancos como Metropolitan Life, Lehman Brothers e Morgan Stanley. O grupo foi liderado pelo próprio David Rockefeller. Associações poderosas como essas também fizeram incursões na política, para “colocar as coisas nos seus lugares”, como haviam planejado décadas antes.

Em meados da década de 1950, Nova York tinha “a cultura industrial mais rica e mais diversificada do mundo”, argumenta Fitch. A diversidade da indústria deu a ela flexibilidade e estabilidade, tornando-se uma cidade rica com “uma série de serviços públicos invejados pelo resto da nação e inimaginável hoje”, incluindo um sistema universitário com taxa de matrícula gratuita e um sistema hospitalar de renome. A urbanista Jane Jacobs, que morava no centro de Manhattan, homenageou o que chamou de “Hudson Street Ballet” – a forma como a vizinhança a vivia todas as horas, na proximidade entre a indústria e as residências. As mercearias, lavanderias e a “variedade desconcertante de pequenos fabricantes” deram à cidade uma vitalidade inigualável. “Possuímos mais vivacidade, variedade e escolha do que” merecemos, escreveu Jacobs.

Ela era uma forte adversária do plano dirigido pelos Rockefellers para eliminar o porto, os mercados de produtos e restaurantes de almoço e toda a indústria local do Canal Street para a Battery. Ela corretamente previu que a mania especulativa planejada de construção de escritórios seria o fim do Hudson Street Ballet e da classe trabalhadora de Manhattan. Por sua parte, Rockefeller prometeu que sua visão de “catalítica grandeza” revigoraria o bairro nas formas que seus detratores não podiam imaginar.

Então o rezonamento começou. O porto foi fechado e deslocado para Elizabeth, em Nova Jersey. Os empregos industriais foram afastados e, com eles, muitas pessoas da classe trabalhadora de Nova York. Os que ficaram caíram da classe trabalhadora para a pobreza pura e simples. Os edifícios de escritórios surgiram e as pessoas de classe média inundaram de profissionais uma cidade ainda ocupada em parte por pessoas pobres desempregadas. Na década de 1970, a cidade de Nova York foi transformada.

Capitalismo e desastre urbano

Em meados da década de 1970, uma crise financeira atingiu Nova York, e os empresários viram outra chance para expulsar os novaiorquinos da classe trabalhadora. Como Fitch documenta, as elites culparam a classe trabalhadora pela crise, jogando os problemas financeiros da cidade sobre os mais pobres, que dependiam dos serviços de bem-estar social – especialmente os negros e latinos – a quem admoestaram por supostamente drenar os recursos da cidade sem oferecer nada em troca. Uma nova linha popular começou a surgir: Nova York fora desindustrializada; e não havia mais emprego para a classe trabalhadora. Por que essas pessoas não reconheciam que não havia espaço para elas, e simplesmente saiam?

Essa manobra retórica deu às elites da cidade a oportunidade de fazer duas coisas: dizer que não tinham responsabilidade pela crise de desindustrialização – que ela seria somente o resultado de processos econômicos naturais, à qual qualquer classe trabalhadora sábia e meritória teria que se adaptar – e, assim, se afastar das comunidades atingidas mais duramente pela perda de empregos industriais. Esta foi a chamada política de “encolhimento planejado” de meados dos anos setenta, que cortou os serviços públicos (trânsito, saneamento, polícia e segurança contra incêndios) das comunidades pobres e da classe trabalhadora, para expulsá-los da cidade. A atitude subjacente ao encolhimento planejado é melhor resumida nestas observações feitas pelo chefe da Administração de Habitação e Desenvolvimento na época, Roger Starr:
Não devemos encorajar as pessoas a permanecer onde suas chances de trabalho são cada vez mais remotas. Para que os porto-riquenhos e os negros rurais vivam na cidade … não pode mais ser um lugar de oportunidades? … Nosso sistema urbano é baseado na teoria de levar o camponês e transformá-lo em um trabalhador industrial. Mas não há mais empregos industriais”.

Por essa altura, a desindustrialização havia varrido o Rust Belt (Cinturão de Ferrugem, região industrial do nordeste dos EUA) e outras regiões também, de modo que foi conveniente uma linguagem para isso. Uma nova narrativa surgiu para explicar o que aconteceu com a vitalidade e diversidade da cidade de Nova York. As “forças inelutáveis” do mercado foram culpadas: globalização, terceirização, mudanças tecnológicas e “crescimento” sem sujeito – como se o crescimento fosse tão inevitável e impessoal como o nascer do sol.

Na realidade, a crise fiscal de Nova York se devia, em parte, às práticas especulativas arriscadas usadas no boom imobiliário e à dependência de uma única indústria – a imobiliária. Como Fitch explicou, essa monocultura da indústria torna as cidades lucrativas para os barões de qualquer setor que a governem, mas também os coloca à mercê dos altos e baixos dessa indústria. Considere Detroit: era uma cidade de uma só indústria, construída em torno de fabricação de automóveis, e quando a indústria automobilística teve problemas, a cidade inteira caiu. Como Detroit, “Nova York se tornou a cidade de uma indústria perigosamente dependente de um único produto altamente cíclico: prédios de escritórios”.

As elites da cidade, portanto, não apenas baniram a classe trabalhadora, mas mergulharam a cidade em uma condição permanente de dependência da atividade financeira, das imobiliárias e seguros.

“É claro que as forças do mercado existem”, escreveu Fitch. Descentralização e competição global não são mitos. Mas a súbita destruição da cultura industrial que fazia a diversidade de Nova York, a partir de meados dos anos 1950, após meio século de estabilidade, não pode ser explicada como um processo objetivo e impessoal. “As pessoas que desenharam os planos da cidade, que resultaram na expulsão dos trabalhadores da indústria, não eram atores indiferentes – eram indivíduos com interesses materiais e uma visão específica para proteger e ampliar esses interesses, em detrimento dos demais moradores da cidade.”

À medida que a elitização avança na cidade e continua a descobrir novas expressões em Nova York, nós a imaginamos cada vez mais como uma seqüência de eventos inevitáveis. Ao fazê-lo, estamos comprando a idéia de “encolhimento planejado”, de que as pessoas da classe trabalhadora devem se comportar como oráculos de mercado, com tendências de adivinhação se forem inteligentes, ou pelo menos seguindo os empregos para onde eles forem. Nos esquecemos que as tendências econômicas não são apenas abstrações – são ações, também, manifestadas por pessoas reais com planos específicos.

Mas, se os planos da elite podem ser sonhados, eles também podem ser interrompidos.

Por Meagan Day, faz parte da equipe de Jacobin | Texto original em português do Brasil / Tradução: José Carlos Ruy

Exclusivo Editorial PV / Tornado

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