Na atual conjuntura, onde o fascismo desponta nos quatro cantos do mundo, de crise na economia, de contestação da hegemonia unipolar dos EUA, precisamos repensar nossa sociedade.
Concedi entrevista à página Vozes Livre do Facebook, sob edição geral de Liza Nunes, advogada e cyberativista, sobre meu 13o livro, lançado neste mês de setembro, que trata da vida e obra de Karl Marx, de maneira didática e ideal para quem pretende iniciar os estudos sobre o marxismo. Na atual conjuntura, onde o fascismo desponta nos quatro cantos do mundo, de crise na economia, de contestação da hegemonia unipolar dos EUA, precisamos repensar nossa sociedade. O sistema capitalista que vige no mundo gerando miséria e aumentando cada vez mais as desigualdades, sofrerá mudanças? Na entrevista enfatizo:
“Estudar Marx nesta conjuntura é fundamental, em especial neste momento em que o próprio pensamento marxista está sob ferrenho ataque dos anti-comunistas, que na verdade são os defensores intransigentes do capitalismo”.
Como um comunista marxista-leninista, você acredita que a atual conjuntura política contribuiu para lançar um livro sobre Marx?
Bem, nós vivemos hoje no Brasil a mesma conjuntura política que o mundo vive, que pode ser definida, de um modo geral, como de tendências conservadoras, reacionárias, e, em alguns países, beirando o fascismo; lembrando que o fascismo é um regime político que prevaleceu especificamente na Itália de 1920 a 1930, e é um sistema político distinto com relação ao nazismo da Alemanha.
Marx foi o maior pensador que a humanidade conheceu até o século XIX, insuperável em suas análises, em suas formulações teóricas. A ciência que ele apresentou ao mundo como novidade – inclusive a ciência da sociedade que chamamos de marxismo – traz dentro de si algumas leis gerais que regem esta própria sociedade. E, tal qual na física, na química, existem leis gerais que valem em todas as situações, o marxismo formula algumas destas leis gerais que são grandes instrumentos para que possamos estudar a fundo qualquer sociedade, e não uma sociedade específica.
Eu poderia dar um exemplo simples de uma lei geral formulada por ele, como essa que apresento a seguir: todas as sociedades guardam dentro de si uma contradição insolúvel que as levará inevitavelmente à sua destruição ou substituição por outra. Isso é uma lei geral. Nós tivemos os sistemas escravista, feudal e capitalista, então por que este último sistema será eterno? Ele também traz dentro de si as contradições que o levarão à destruição. Portanto, estudar Marx nesta conjuntura é fundamental, em especial neste momento em que o próprio pensamento marxista está sob ferrenho ataque dos anticomunistas que na verdade são defensores intransigentes do capitalismo.
De acordo com a campanha de lançamento, o senhor diz que procurou apresentar de maneira didática a vida e obra de Marx. De que maneira esta leitura poderá facilitar para quem está iniciando os estudos marxistas?
Eu estudo e leio a obra e o pensamento de Karl Marx há exatamente 45 anos. Também leio livros de autores chamados comentadores de Marx. Na filosofia antiga da Grécia, havia os grandes pensadores, especialmente Aristóteles, e depois os chamados comentadores de Aristóteles. São as pessoas que interpretaram o seu pensamento filosófico e em certas circunstâncias o desenvolveram. Com Marx é a mesma coisa. É claro que existem obras boas de bons marxistas, e obras críticas ao marxismo que procuram apresentar de forma equivocada, intencionalmente ou não, o pensamento original.
Este meu livro procura ser um livro didático, amplamente ilustrado, com 140 imagens, entre fotos e ilustrações, todas elas com legendas de duas ou três linhas que o leitor, ao adquiri-lo e com ele fizer um primeiro contato, e ler exclusivamente as legendas das 140 imagens, já terá tido uma ideia, ainda que superficial, do pensamento marxista.
O livro foi escrito com uma linguagem muito simples, foi diagramado por um bureau especializado em livros didáticos e revistas, especialmente na área de Filosofia e Sociologia. O livro ficou leve, ficou bonito, bem apresentado, por meio do qual o iniciante no pensamento de Karl Marx travará contato com definições fundamentais do seu pensamento, em especial filosófico, social e econômico.
No aspecto filosófico, o leitor conhecerá o significado do materialismo dialético e materialismo histórico. Na Sociologia, conhecerá e entenderá definições fundantes de uma sociedade como a nossa, o que são as classes sociais, qual sua origem, o que é o Estado, como ele se originou e qual é o seu desenvolvimento. No livro, mostro os vários tipos de Estado. Em relação ao pensamento econômico de Marx, o leitor conhecerá as definições fundamentais sobre a teoria da mais-valia (que o tradutor da BoiTempo chama de “mais-valor”, que é de minha preferência), que é básica para entender a chamada acumulação primitiva de capital, por que uma pessoa fica rica apenas com seu trabalho ou trabalho de outros que ela contrata. Então veremos, na parte econômica, as contradições existentes dentro do capitalismo, porque ele vai desaparecer como sistema, disse Marx.
É um livro de fácil leitura, e tem alguns anexos que ajudam muito a aprofundar o conhecimento, especialmente três artigos escritos por Vladimir Lênin, líder da revolução bolchevique da antiga Rússia de 1917, que é o maior desenvolvedor do pensamento marxista. Por isso sempre dizemos que não é possível sermos apenas marxistas, temos de ser marxista-leninistas, tendo em vista certos conceitos que Marx formulou de forma embrionária em função do estágio do capitalismo no sécul
Qual paralelo o senhor faria entre a conjuntura do século XIX e a atual, para dizer a importância de estudar Marx, já que ele não teve tempo de abordar determinados problemas de sua época, além de outros que surgiram posteriormente?
Como eu disse na pergunta anterior, o capitalismo no século XIX era um, no século XX foi outro e, neste início de século (XXI), sofreu uma modificação. Dizemos que o capitalismo na época de Marx era concorrencial. Marx foi um pensador que viveu no próprio século (alguns pensadores dizemos que viveram entre séculos). Marx nasce e morre no século XIX: nasceu em 1818 e morreu em 1883, ainda bastante jovem, com 65 anos. E o capitalismo da sua época poderíamos dizer que seria um capitalismo concorrencial.
o XIX, quando ele viveu. Foi Lênin então que aprimorou todas essas teorias, em especial o conceito de classe social e de Estado e seu papel na sociedade comunista e sobre o capitalismo financeiro.
Claro que se modificou no começo do século XX, para virar um capitalismo monopolista, ao longo do século XX. No início do século XXI, o capitalismo vai sofrer nova modificação para um modelo chamado neoliberal ou ultraliberal, passando a ser definido como capitalismo financeiro. Marx não viveu isso, ainda que, de forma embrionária, ele mencione em O Capital o que chama de “capital portador de juros”, que é o capital industrial associado com o capital bancário. Tudo isso era muito embrionário na época dele.
O capitalismo produtivo segue a regra básica que ele desenvolveu – e ele não foi o formulador original – em um dos livros de O Capital, o livro 4, chamado Teorias da Mais-Valia. Outros autores trataram da mais-valia, inclusive Adam Smith e David Ricardo – os economistas mais famosos antes de Marx –, daquela corrente econômica, na Inglaterra, chamada fisiocrata.
Então, o capitalismo sofreu mutações para poder viver mais tempo. Em relação ao capitalismo chamado produtivo, do século XIX até a primeira metade do século XX, eu diria que o marco principal é a Conferência de Breton Woods, em 1944, quando foram criados o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, e o capitalismo sofreu esta mutação, passando a ser financeiro.
Na época de Marx, o capitalismo produtivo era a riqueza que provinha do trabalho produtivo de proletários que trabalhavam, certas horas ao dia, em cima de determinadas matérias-primas – no caso operários do setor industrial –, e este trabalho produzia uma riqueza que não ficava apropriada por quem as produziu, que são os proletários, mas por outros: os detentores, os proprietários dos meios de produção. Este é um conceito muito importante de trabalho produtivo.
Por meio de um capital investido em uma fábrica, em uma empresa, ou mesmo em uma empresa no setor de serviços, nós vamos entender mercadoria, não só aquele bem material, mas também aqueles chamados bens imateriais. É como o professor que dá aula em uma escola privada, particular, as suas mãos não estão sujas de graxa, estão sujas de giz. O que um professor produz é chamado de bem imaterial, intangível. Você não pega esta mercadoria, mas é uma mercadoria, é um serviço educacional. Isso, na época de Marx, apesar de ele ter dado alguns exemplos, bem pequenos, o setor de serviços no século XIX era quase inexistente, assim como o serviço público era bem pequeno. Era fundamental o setor industrial. O produtor de bens materiais, de peças de qualquer natureza.
Então nós temos de compreender esta modificação. Hoje o capitalismo financeiro do século XXI, que não começa no século XXI evidentemente, conseguiu inventar um modelo em que o dinheiro (capital) produz mais dinheiro sem passar pela produção de mercadoria ou serviços. Como isto é possível? Ele aumenta a partir de quê? É mágica? É um cassino? É pura especulação! Se esse capitalismo estiver certo, Marx está errado. Qual seja, o trabalho produtivo produz riqueza. Hoje se produz riqueza sem trabalho produtivo. Como nós temos convicção de que este sistema, este modelo, está errado, ele desaparecerá. Aí entra-se numa discussão infindável que não quero fazer nesta entrevista: é possível este capitalismo atual financeiro voltar a ser capitalismo produtivo? Aí é assunto para outro debate.
Você, como sociólogo e tendo sido professor por mais de duas décadas, fale-nos sobre a contribuição sociológica de Marx.
Quero aqui apenas dar um pequeno resumo sobre os dois aspectos fundamentais do pensamento marxista, que também não foi ele o primeiro que teorizou. Um é sobre classe social e outro sobre Estado. E, dentro da classe social, o que Marx chamou de luta de classes. Há uma frase de Marx, que é sempre tirada de um contexto, muito profunda, que está contida no Manifesto do Partido Comunista – escrito por ele e seu amigo Engels de quarenta anos, inseparáveis –, publicado em 1848. A frase é a seguinte: “A história da humanidade nada mais é do que a história da luta de classes. A luta entre senhores proprietários de terra e escravos, patrícios e plebeus, servos e senhores feudais, e atualmente proletários e burguesia”.
Então este conceito de classe e de luta de classe é basilar no marxismo. E aí entra a definição de classe social que, mais uma vez, dizemos que não é possível ser só marxista, porque a única definição de Marx sobre o significado de classe social está no livro III de O Capital com o qual ele gasta dois terços de uma página. Nada mais ele escreveu, que nos ajudasse com uma definição clara, didática e objetiva sobre classe social. E ele fala o tempo todo no operariado, proletariado, como sinônimo de classe social. Como se os leitores de suas obras e de sua correspondência – ele escreveu milhares de cartas – com seus companheiros, e até mesmo com seus adversários, contestando aspectos do seu pensamento, pois ele acreditava, imagino eu, que todo mundo que lia suas obras sabia o significado de classe. Mas não é verdade.
Esta é uma das definições mais complexas e polêmicas no campo da sociologia. No meu livro mesmo, dou a definição de sete autores não marxistas – para não dizer que não falei das flores. Sempre brinquei com meus alunos, dizendo que sou um sociólogo marxista, nunca escondi isto, mas mostro também como pensam outros autores, e faço a comparação mostrando a superioridade da Sociologia marxista com relação a outras correntes sociológicas. Portanto a definição de classe social de Marx é embrionária. Será Lênin que a aprimorará.
Evidentemente no livro coloco a melhor definição de classe, tanto de Lênin como de Engels. Para Marx é uma definição genial, ele relaciona classe com grupos sociais, setores da sociedade com as fontes de sua renda e aí diz quais são as três grandes classes, três grandes ordens na sociedade: as que vivem do lucro, que são os empresários; as que vivem do salário, que são os proletários, trabalhadores produtivos; e as que vivem de renda que são os rentistas.
Mas esse rentismo do século XIX não é o da aplicação financeira, mas o da chamada renda da terra ou da locação de móveis. Marx então classifica a existência de três grandes classes, e não duas. O marxismo, que sucedeu ao próprio Marx, acaba, vamos dizer assim, reduzindo uma tendência reducionista de falar em duas grandes classes, o que não deixa de estar certo: a burguesia e o proletariado.
Na época de Marx, o sistema feudal já era decadente, quase desaparecendo. Os senhores feudais arrendavam as suas terras para terceiros, ou mesmo aqueles que tinham muitos imóveis na cidade alugavam suas propriedades e viviam exclusivamente dessas rendas. Na época isto era muito expressivo, e ainda hoje é expressivo. Muitas pessoas que têm dezenas e até centenas de imóveis não geram um emprego sequer. Basta ter uma sala com um funcionário que administre os contratos, tudo eletrônico, e mande o boleto, e as pessoas pagam os seus aluguéis e não se gera nada de riqueza para a sociedade, não se gera nenhum posto de trabalho; elas vivem da renda.
Mas não é, por assim dizer, uma classe que, em termos de tamanho, seja de grande expressão na sociedade hoje. Mas ela existe, evidente. Tanto que o setor financeiro é rentista e é basicamente o que manda na sociedade atual. Então, a definição de Marx de classe diz respeito à fonte de renda com a qual se vive. Aí Lênin desenvolve isso com base no pensamento marxista e vai dizer então que não é só a fonte de renda que define uma classe, mas também é importante saber o que o trabalho desses empregados de modo geral pode render para seus empregadores.
Aqui entra o conceito de trabalhador produtivo (não confundir produtivo com o trabalhador que produz muita coisa, e é mais eficiente do que produz menos). Trabalho produtivo é no sentido de produzir riqueza para quem o contrata. Então é a mais-valia. Por exemplo, um servidor público: o trabalho dele não produz mais-valia. A quem enriquece o trabalho de um servidor público de um posto de saúde? Então, essa é uma definição que combina com o que Marx falou, é o que nós chamamos de desenvolvimento do conceito marxista de classe.
Costumo dar como exemplo os trabalhadores domésticos. Se tenho, na minha casa, uma pessoa de classe média, uma trabalhadora mensalista, contratada, registrada, com todos os seus direitos, aí pergunto: Essa trabalhadora doméstica é proletária no sentido de classe social? O marxismo tem que responder a isso. A nossa resposta é que ela não é uma proletária, porque o trabalho dela não é produtivo, no sentido de produzir riqueza para quem a contrata. O trabalho dessa trabalhadora doméstica na minha casa não me torna mais rico.
Assim, usando o conceito de Marx, nós temos de ver qual a fonte de renda com a qual pago o salário dela. Eu não pago o salário da empregada com o lucro de uma empresa que não tenho. Pago o salário dela com meu próprio salário. Portanto, em tom de brincadeira, podemos dizer assim: ela não só não me torna mais rico, como me empobrece todos os meses em um determinado valor equivalente ao que gasto com sua contratação.
Nós temos de entender isso: por exemplo, classe social nada tem a ver com tamanho do salário que a pessoa recebe. E aí o exemplo que eu dou é o de um astronauta que trabalha na estação espacial – que trabalhava no ônibus espacial, hoje eles estão aposentados como o Discovery Challenger – e levava satélites para o espaço. Esses astronautas são militares de alta patente da Força Aérea dos EUA, são pilotos de caça treinados para ser astronautas. Eles, provavelmente, ganham vinte mil dólares por mês, ou mais, portanto recebem altos salários. Se você não estiver atento ao pensamento marxista, vai dizer “este cara é um burguês, não é um proletário”. Aí vou dizer que você não entendeu nada do pensamento marxista. Por quê? Porque não é pelo tamanho do salário desse trabalhador que o incluímos nesta ou naquela classe social. Tem a ver com o trabalho que ele realiza, o quanto de riqueza ele agrega a seus empregadores. Com um satélite colocado no espaço a um custo de cem milhões de dólares, um salário de vinte mil dólares é absolutamente nada. Veja a riqueza e a lucratividade que são geradas com o trabalho desse astronauta.
Por fim, o segundo grande aspecto da Sociologia marxista é o surgimento de Estado que não existiu sempre. Houve um grande período da história da humanidade em que – já éramos seres humanos, já tínhamos nos tornado sedentários – já não éramos mais nômades, coletores e caçadores. Tínhamos nos fixado, geralmente próximos de rios, nos primeiros assentamentos humanos, na Mesopotâmia.
A história humana registra muito mais tempo de vida em comunidades primitivas que não conheceram nem classe social nem Estado, do que o tempo que nós conhecemos as sociedades classistas e com Estados cujo caráter estava relacionado à classe dominante da sua época. Por exemplo, quando surge o escravismo, surgem duas grandes classes e o caráter do Estado daquela época era escravista.
A mesma coisa quando o escravismo desapareceu e surgiu o feudalismo: surgem duas classes sociais, o servo e o senhor feudal. E o caráter desse Estado era feudal. Ele defendia os interesses da classe que dominava política e economicamente sua época: os senhores feudais. Por fim, a mesma coisa no capitalismo, com o proletariado e a burguesia. O caráter do Estado atual capitalista é burguês, e não nos iludamos.
Era comum meus alunos perguntarem “puxa, professor, o Lula é presidente desde 2003, o caráter do Estado brasileiro se modificou? Não é mais capitalista?”. É o que a gente diz “ele ganhou a eleição, mas não tomou o poder, não mudou a estrutura da sociedade”, e nem haveria condições de mudar. Então são estes dois pilares da Sociologia marxista.
Depois da queda do muro de Berlim, em 1989, a teoria marxista teve pouco desenvolvimento. No entanto, hoje, com o surgimento de uma nova ordem mundial, com a crise global do capitalismo, você concorda com a tese do David Harvey de que se faz necessário recuperar a contribuição marxista para entender esse modo de produção, que seria o fim do obscurantismo neoliberal para libertar novas forças sociais e políticas dispostas a refletir, em novas bases alternativas críticas ao modo hegemônico do capital?
Essa pergunta remete ao mundo pós-queda do muro de Berlim em 1989 e fim da União Soviética em 1991. Em relação à menção, na pergunta, ao surgimento de uma nova ordem, apontamos de fato esta nova ordem a partir de 1991 quando acaba a União Soviética e o mundo passa a ser unipolar. O mundo bipolar anterior, da época da guerra fria, havia desaparecido. Então há um novo mundo.
O geógrafo David Harvey, do qual li alguns livros, considero, hoje, um dos maiores marxistas vivos no mundo. Ele é polêmico, evidente, e nem todos, entre nós marxistas, estamos de acordo com o seu pensamento, mas tenho uma grande simpatia e admiração por seu pensamento. Na pergunta, você menciona as bases alternativas a este modelo hegemônico de capital, ou seja, seria possível imaginar no horizonte o fim do capitalismo financeiro chamado neoliberal?
Este modelo de capitalismo financeiro chamado neoliberal surge a partir de um livro teórico de Friedrich Hayek, austríaco, da escola austríaca de economia, publicado em 1944, The road to serfdom (O caminho da servidão), que na verdade não é um livro de economia, mas um livro político. Ele é considerado um dos pais, talvez o principal teórico do neoliberalismo moderno.
Temos também Ludwig von Mises, o próprio Karl Popper, Milton Friedman, entre outros. Essas pessoas eram membros de uma sociedade chamada Société de Mont Pèlerin, ou Sociedade do Monte Pelerin, que reunia pessoas conservadoras, cuja essência do pensamento pode ser assim resumida: quanto mais igualitária uma sociedade for, mais escrava os seus membros serão, portanto, em sentido contrário, a liberdade só pode ser conquistada se existirem sociedades profundamente desiguais.
Evidentemente não estamos nem um pouco de acordo com este pensamento. No pensamento de Harvey, ele levanta esta perspectiva de alternativa a esta hegemonia neoliberal do modelo capitalista financeiro atual. Não tenho essa certeza se está esgotado tudo aquilo de lucro e de renda e de concentração de renda que este sistema atualmente gera.
Mesmo com a crise, com a globalização, com a crise financeira internacional, com a bolha especulativa, com a crise das Bolsas, com a crise do petróleo, com excessiva oferta do produto e queda de preço e, no meio de tudo isso, esta pandemia mundial, ainda assim não estou convencido de que está esgotado o modelo do capitalismo financeiro. A meu ver, muita coisa ainda vai acontecer.
Lembremos a crise do subprime de 2008, quando nos Estados Unidos houve a quebra de grandes bancos de investimentos, que não são bancos comerciais, e mais algumas grandes empresas. Algumas não quebraram porque não podem quebrar. O termo usado em inglês é to big to fail. Elas são muito grandes para falir. Como é o caso da General Motors. A General Motors é a maior empresa do mundo, provavelmente tem mais de 900 mil empregados. Uma empresa dessa não pode falir. Ela foi praticamente estatizada. Isso também foi feito com relação ao City Bank.
O governo neoliberal de Bush filho não teve outra alternativa senão comprar ações, injetar diretamente dinheiro do Tesouro dos Estados Unidos na empresa. O governo estadunidense comprou ações da GM para ela não ir à falência. Na época, claro que tem doze anos, para sair da crise, os Estados Unidos investiram 700 bilhões de dólares. Não chegou a um trilhão.
Nesta crise atual eles já investiram mais de seis trilhões de dólares. E na época o investimento era para “salvar empresas” e não ajudar as pessoas mais desfavorecidas. Nos Estados Unidos, as famílias mais pobres recebem um cheque do tesouro de U$ 1.400,00, que significa R$7.000,00. Isso, para nós termos uma ideia do que tem sido feito. Mas com o objetivo de preservar o sistema. Agora então a pergunta que se faz é a seguinte: O fato de o Estado ter ampliado muito a sua presença, a sua necessidade histórica, faz com que possamos anunciar a modificação para outro modelo? Eu ainda não tenho esta certeza. Só o tempo poderá dizer.
Para finalizar, gostaria que você dissesse para os nossos jovens, em um momento pós-pandemia, da tecnologia, quais as lições que podem ser extraídas dos ensinamentos de Marx, como elementos de transformação para um mundo melhor, justo e solidário?
Bem, não há outra teoria, outro pensamento estruturado alternativo ao marxismo, que eu conheça, que possa instrumentalizar essa grande parcela da sociedade – que são os jovens –, no sentido da construção de um mundo melhor do que o atual, que não seja o pensamento marxista. Todos os outros pensamentos, outras correntes de pensamento, outras teorias econômicas e sociológicas não dão conta de explicar as desigualdades que nós vivemos. Como não dão conta de formular um modelo de sociedade, onde a distribuição da riqueza, se não for absolutamente igual, seja muito melhor do que a atual, que é concentradora de renda. Não há.
O conceituado economista francês mais famoso e badalado da atualidade é Thomas Piketty, que escreveu o clássico O capital do século XXI. Recentemente ele publicou um novo livro, intitulado Capital et Ideologie (Capital e a Ideologia), com 1.200 páginas. Uma grande obra, já disponível com tradução para o Brasil.
Ele não é marxista, é um pensador que, na verdade, quer ajudar o capitalismo a ser melhorado, mas não quer modificá-lo, substituí-lo por outro modelo. No entanto a sua obra é muito importante no sentido de minimização das desigualdades e da concentração de renda. Ele dá números e dados e apresenta propostas concretas de como fazer essa justiça tributária e social, que evidentemente passa pela tributação das grandes rendas e das grandes fortunas.
Só existe dois países no mundo que não tributam o lucro e o dividendo, Brasil e Estônia. O que é o lucro e o dividendo? O grande empresário industrial, a empresa, produz uma riqueza muito grande – na verdade quem a produz são os trabalhadores. Este empresário retira – mês a mês – o chamado pró-labore, que é uma espécie de salário do dono da empresa. Ao final do ano ele retira o chamado lucro e dividendos. Se for dono sozinho, é tudo dele, se for uma sociedade anônima, esse lucro e dividendos são divididos proporcionalmente entre os portadores de ações da empresa. Sobre esse lucro não incide nenhum tipo de imposto. Então, suponhamos que esse empresário retire de lucros e dividendos um milhão de reais. Esse dinheiro é absolutamente livre de impostos e taxas. E não há força política hoje, no Brasil, não há reforma tributária, que passe neste Congresso, que vá avançar sobre essa renda chamada lucro e dividendos, ou sobre a taxação das grandes fortunas e das heranças. Então isso torna a sociedade desigual.
O marxismo propõe essa taxação, mesmo antes de chegar naquela sociedade que nós chamamos de socialista. E, no limite, no fim do desenvolvimento histórico da humanidade, como sociedade última, o comunismo, que seria onde todos viveriam em absoluta igualdade. Não há hoje uma perspectiva de que isso possa ser concretizado em curto ou médio prazo.
Então vem a indagação: Não se faz nada antes de chegar ao socialismo? Por isso os marxistas têm propostas para este momento. Marx pouco falou sobre as sociedades do futuro. E as poucas vezes que ele menciona isso nas suas obras ele o faz de forma romantizada. A passagem mais bonita é a que ele vislumbra um dia em que os seres humanos viverão em harmonia com a natureza, e a libertação do trabalho acontecerá de forma que as pessoas possam escolher de manhã pescar e a tarde pastorear. Ele dá esses dois exemplos de funções sociais que hoje quase não têm nenhum papel, mas temos uma ideia do que ele quis dizer.
Mas qual é a mensagem dessa frase? É que se pode usar grande parte das horas de trabalho para atividades que se gosta como lazer e cultura, porque a riqueza toda produzida na sociedade está bem distribuída, a ponto de poder se dar ao luxo de pescar numa bela manhã e à tarde assistir uma peça de teatro ou outra coisa qualquer.
Então a construção desses modelos alternativos só é possível imaginar em uma sociedade que não seja desigual como a atual e que possa distribuir melhor, se não igualitária, a renda que essa mesma sociedade reproduziu. Então este mundo solidário e justo é o grande objetivo final do pensamento marxista.
A diferença que estabelecemos entre o socialismo e o comunismo podemos resumir da seguinte forma: no socialismo, a cada um segundo sua necessidade e de cada um segundo sua capacidade. Ou seja, a pessoa recebe aquilo que precisa mas tem que trabalhar mesmo que não seja um trabalho de mesma intensidade entre todo mundo, porque são pessoas com situações distintas que evidentemente não têm o mesmo desempenho, mas tem que produzir a partir de um mínimo de jornada de trabalho. Este é o socialismo. Todo mundo está garantido.
Mas existem situações em que a pessoa não pode trabalhar. Seja porque nasceu com alguma deficiência física ou mental, ou uma série outras de razões. Então a definição do comunismo é só a primeira parte da frase, a cada um segundo a sua necessidade. Portanto, o Estado, que não é o Estado opressor que nós conhecemos, não é o Estado que defende os interesses de uma classe dominante porque, neste momento, segundo a teoria leninista e não mais de Marx, o Estado desaparece da forma como conhecemos e dá lugar a uma outra organização que cuide fundamentalmente da produção e distribuição da riqueza produzida pela sociedade de forma coletiva.
Por isso sempre digo que não dá para ser só marxista. No comunismo, o Estado tende a desaparecer e ser substituído por um órgão que controle a produção e a distribuição dos bens básicos para as pessoas na sociedade. Então esta é a definição mais leninista de Estado. Dessa forma, as pessoas teriam assegurado tudo o que necessitariam para sobrevivência. Uma família com cinco filhos tem uma necessidade de vida, de renda, de alimentos e de moradia com dignidade, em termos de números de quartos, maior do que um casal que não tem filhos ou tenha um só filho. Isto se chama de uma sociedade planificada, harmônica, em igualdade.
Este mundo está ainda muito distante. Mas temos que manter elevada a esperança de que é possível construí-lo.
por Lejeune Mirhan, ociólogo, Professor, Escritor e Arabista. Colunista da Revista Sociologia da Editora Escala, da Fundação Maurício Grabois e do Vermelho. Foi professor de Sociologia e Ciência Política da UNIMEPentre 1986 e 2006. Presidiu o Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo de 2007 a 2010 | Texto em português do Brasil
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