Sobretudo nos últimos dois anos as greves em sectores com grande impacto público parecem multiplicar-se. Cria-se a percepção de que todos os sectores sucessivamente estão em greve, ou de que, em cada sector, os problemas não se resolvem e se retorna ciclicamente à greve. Os utentes queixam-se por eles, pelos familiares e pelos outros. Fazem-se ouvir as vozes do costume criticando os sindicatos “comunistas”. Fazem-se ouvir vozes não tão do costume, criticando a direita: pôs fogo às florestas, criou o problema de Tancos, agora está também a fomentar greves. E fazem-se ouvir vozes a criticar tudo e todos, começando pelos sindicatos, mas não acabando nestes. Até porque surgem tentativas de recurso à greve em moldes não-tradicionais que são descritos como ilegais. Uma amiga administradora de um grupo no Facebook escrevia há dias, a propósito do anúncio de uma greve prolongada de enfermeiros, financiada por crowdfunding apontada a blocos operatórios específicos “Mas, como é isto? Não há uma providência cautelar para evitar esta pouca vergonha completamente contrária ao espírito da lei da greve?”. Para tentar compreender a situação há vários factores a considerar.
O primeiro factor é a heterogeneidade da massa de trabalhadores destes sectores em termos de grupos profissionais, que determina processos reivindicativos desfasados, quando não inspirados pelo desejo de manter ou melhorar a posição em relação aos outros grupos. Na Marinha Mercante sempre tivemos os capitães e outros oficiais, os engenheiros maquinistas, os outros marinheiros, nos Transportes Aéreos os pilotos, o pessoal de cabine, o pessoal de terra, o pessoal de manutenção, os controladores de tráfego aéreo, nos Transportes Ferroviários os maquinistas, o pessoal comercial, o pessoal de gestão das vias, etc., podendo cada grupo de per si paralisar todo o sector.
O mesmo sucede na Saúde, com a presença de médicos, enfermeiros e, agora com maior visibilidade, de técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica (reflectindo uma formação académica de base que dá a identidade), na Educação (professores e pessoal auxiliar) e na Justiça (magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público, oficiais de justiça). Uma boa parte destes grupos profissionais, sobretudo nos sectores dependentes do Estado, tem estado activo do ponto de vista reivindicativo e tem exercido o direito à greve. Já nos Transportes Urbanos, salvo o caso do Metropolitano de Lisboa, parece viver-se alguma calma laboral.
O segundo factor prende-se com reestruturações que, cindindo empresas históricas, quebraram comunidades de trabalho e multiplicaram os interlocutores patronais. Estou a pensar no caso da cisão CP-REFER e na posterior fusão REFER-JAE numa chamada IP. Estávamos habituados a que os comboios parassem por causa dos maquinistas da CP e em certas circunstâncias a amaldiçoar a administração desta (ou a “engenheirada”) pelos males da empresa e por erros da política laboral interna. Mas a IP (?) em greve, o que é? Sei que muita gente pensa que a privatização, a regionalização e a municipalização vão partir a espinha aos sindicatos profissionais e acabar com as greves. Mas tenho dúvidas e, talvez, nestas circunstâncias, o sindicalismo profissional tenda, a prazo, a reforçar-se. É ver a RYANAIR a queixar-se de ter de negociar com dirigentes sindicais que são funcionários da TAP.
O terceiro factor deriva dos caminhos que seguiu a reestruturação sindical após a revogação das normas orientadoras que visavam garantir a unicidade sindical ou pelo menos incentivar a concentração e a verticalização, caminho esse que levou à coexistência de sindicatos verticais, horizontais, de quadros, e até de empresa ou organismo, ligados a cada das confederações oficiais, ou independentes. No início a CGTP parecia favorecer um modelo de verticalização nos sindicatos distritais históricos que se agregavam em federações sectoriais mas acabou, possivelmente por debilidade estrutural e económica por favorecer a fusão das entidades existentes em grandes sindicatos verticais de âmbito nacional e acolher sindicatos horizontais como os dos médicos, dos enfermeiros e dos professores.
Também no início a UGT lançou um programa de constituição de grandes sindicatos verticais de âmbito nacional mas acolhe actualmente muitos sindicatos horizontais aderentes desde o início, ou que por ela vieram a optar mais tarde, e até sindicatos distritais históricos. Ambas, apesar da repulsa inicial da CGTP pelos “sindicatos paralelos” criaram novas estruturas ou alargaram o âmbito das que já existiam, para fazer concorrência à outra ou evitar lacunas de representação. Aliás dentro de cada uma das Confederações existem sindicatos com âmbitos sobrepostos. O poder político que obrigou a CGTP a participar na concertação social e mantém dela afastados os independentes, vem agora tentando minimizar as consequências desta pulverização através de legislação sobre contratação colectiva e negociação colectiva – sem ir aos extremos da alemã – mas a nível sectorial ou de empresa ou organismo quem manda é quem tem força para trazer os trabalhadores para a rua ou decretar greves.
Um observador desprevenido ou pouco actualizado – e é o meu caso, mas não parece não haver sociólogos do trabalho e das organizações no terreno – tem dificuldade em perceber o que se vem passando na enfermagem: o SEP, Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, filiado na CGTP (resultou creio, do alargamento de âmbito do sindicato histórico sediado em Lisboa), tradicionalmente mais combativo, e que fazia as greves todas do calendário – as da função pública e as suas – pareceu (inclusive aos olhos dos partidos de esquerda!) ter sido ultrapassado durante o ano passado por um movimento dinamizado pela senhora bastonária (PSD, que horror !), que trouxe centenas ou milhares de enfermeiras e enfermeiros à rua e à greve, e cuja expressão sindical parecia ser, na altura, o SE, Sindicato dos Enfermeiros (tido há muitos anos como uma espécie de propriedade do Sr. José Azevedo, resultou, creio, do alargamento de âmbito do sindicato histórico sediado no Porto e está inscrito na UGT), e o SIPE, Sindicato Independente dos Profissionais de Enfermagem, sediado em Coimbra e federado com o primeiro.
Recentemente foram constituídos uma Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros, com contacto em Ovar, e um Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal, com sede em Évora. Foram estes dois sindicatos recém-criados que anunciaram a greve prolongada aos blocos operatórios e dinamizaram a recolha de fundos, que terá sido tão bem sucedida que permitiu incluir mais dois blocos operatórios do que os inicialmente previstos. As adesões são, à data em que escrevo, uma incógnita, pois não é preciso ser sindicalizado para fazer greve.
Por último, para a multiplicação das greves tem contribuído a inércia das tutelas, que não permitem que as empresas públicas negoceiem ou que quando negoceiam elas directamente empatam. Se estivermos atentos, facilmente identificamos, por exemplo nas áreas dos Transportes Ferroviários e da Saúde, casos em que houve greves, algumas vezes desconvocadas, outras não, pura e simplesmente para exigir a abertura de negociações, novas greves para exigir contrapropostas, e até greves para exigir que o Ministério das Finanças dê seguimento a entendimentos já firmados com as empresas ou as tutelas sectoriais.
No caso específico das carreiras da Administração Pública a respectiva Secretaria de Estado esteve dois anos a preparar um descongelamento de progressões para as carreiras de regime geral e as medidas para os corpos especiais ficaram para negociação das respectivas tutelas, tendo-se reinstalado a confusão. Tive ocasião oportunamente de escrever “é claro que não tendo a questão sido devidamente equacionada, e não havendo dinheiro para tudo, os velhos argumentos, as velhas fórmulas e os velhos ódios voltam à tona” e terá sido isso que se tem passado como os professores, onde nasceu um novo sindicato independente mais aguerrido, o STOP – Sindicato de Todos Os Professores e onde os sindicatos de professores tradicionais, afectos tanto à CGTP como à UGT, radicalizaram o seu discurso e aparentemente, também a sua acção.
E é neste contexto que estão a surgir as greves alegadamente ilegais ou de que se refere, como transcrevi acima, que constituirão uma “pouca vergonha completamente contrária ao espírito da lei da greve?”
A questão da legalidade das greves faz-me lembrar uma narrativa de Raquel Varela sobre a primeira lei da greve no pós-25 de Abril, acentuadamente restritiva, publicada por um Governo de Vasco Gonçalves que reflectiria uma hostilidade, conotada com o PCP, à multiplicação de greves, e que acabou por ser largamente desrespeitada, e sobre lei da greve de 1977, muito mais favorável, se bem que as alterações legislativas posteriores tenham introduzido desde então restrições, nomeadamente em matéria de pré-avisos e de serviços mínimos, por alargamento das “necessidades sociais impreteríveis”. A autora não terá detectado que a lei do governo provisório era uma transposição (exigida pelo Presidente da República António de Spínola?) da lei adoptada na RFA a partir da II Guerra Mundial, proibindo designadamente as greves políticas e as greves de solidariedade, e que a lei de 1977 resulta de a sua filosofia não ter sido acolhida pelos deputados constituintes de 1976.
A utilização da lei da greve tem-se restringido, na Administração Pública, à realização de uma greve por ano, e nas áreas mais combativas, como justamente a da enfermagem, e em menor grau, a do ensino, a vários dias de greve por vezes regionalmente distribuídos, para maximizar o impacto publico, mas os resultados parecem ser magros, e salvo quando afectam os utentes (a Administração Pública não contabiliza a perda de lucros..) irrelevantes. O cansaço com este modelo, e a acumulação de descontos no vencimento, tem levado a ensaiar formas de recurso à greve que minimizam os descontos, como a greve aos exames e outras formas de avaliação (sindicatos de professores da CGTP e da UGT e recentemente, na greve aos conselhos de turma e mais em evidência, o STOP), greve ao excesso de horas lectivas (sindicatos de professores da CGTP e UGT), greve a operações de registo seleccionadas no momento (um sindicato da UGT), e a greve ao funcionamento de blocos operatórios predefinidos atrás referida. A resposta tem sido administrativo-doutrinal, com recurso a pareceres do Conselho Consultivo da PGR, que consideram ilegal a greve self-service, como em tempos já consideraram ilegais as greves rotativas ou articuladas, em que sectores diferentes de uma empresa param sucessivamente. Perante as ameaças de marcação de faltas injustificadas os sindicatos desconvocam e remarcam as greves, por vezes alterando a redacção dos pré-avisos.
Não sei quem irá ganhar, aliás a lei da greve poderá ser ainda endurecida sem se porem em causa os limites constitucionais, e ninguém arrisca a relação de trabalho neste contexto de ameaça difusa (é preciso a relação nem sequer existir formalmente, como no caso dos estivadores de Setúbal, para se ousar testar os limites). Mas apesar da hostilidade de círculos de esquerda a estas greves, elas são ainda uma tentativa de acção colectiva por parte de quem se cansou das greves tradicionais ou nelas nunca participou. Feche-se-lhes a porta, frustrando-as, e talvez esta “aprendizagem” abra o caminho ao populismo inorgânico, polarizado à direita.
Para uma visão crítica da verticalização, ler Américo Nunes, Sindicalismo na Revolução de Abril.
Declaração de interesses: num dos dois blocos operatórios incluídos porque já houve fundos para cobrir a perda de salários por greve, deverão ser operados dois familiares de uma pessoa minha amiga, um dos quais um idoso já com 75 anos.
Sem que ninguém tivesse reparado, a Secretária de Estado da Administração Pública, Carolina Ferra, que tinha sido Directora-Geral no ciclo de José Sócrates, acabou por sair na mini-remodelação posterior aos incêndios de 2017.
Artigo “Há uma política de função pública?- Carreiras” no meu blog “Comunicar”.
Raquel Varela “Greves na Revolução dos Cravos” (1974-1975), in Greves e Conflitos Sociais em Portugal no Século XX.
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