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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Nuno Félix da Costa, O Desfazer das Coisas e as Coisas já Desfeitas

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

ed. Companhia das Ilhas, 2015

Estamos em 2021, neste momento em que escrevo, sobre uma edição de poesia (melhor dizendo prosa poética) do século passado, mas que mantém uma tão grande actualidade, que merece e deve continuar a ser lida. Razão? A universalidade dos temas que aborda, desde a leitura dos gregos antigos, que tudo pensaram muito antes de nós, desde a noção de consciência, passando pela discussão do Princípio (do universo, mas também da consciência dele e do ser humano que teve igualmente o seu Princípio, ao ter consciência de si mesmo no mundo), até chegar às modernas conclusões da neurobiologia sobre o que já se sabe do cérebro humano e do muito que ainda falta estudar e descobrir. Nuno Félix, sendo médico psiquiatra, está à vontade para poetizar sobre neurónios, sinapses, ” o tubo neuronal que se não se fechasse o cérebro perdia-se…viveria como um dinossauro decapitado / sem alma na acção nem voz para a surpresa da morte / Aos quatro meses sem proliferação neuronal o eu encolheria / Eu de sapo num príncipe nem bem nem mal comportado” (p.14),  e assim introduzindo na sua escrita elementos que para um leigo surgem como surpresa, desafio, ou por vezes mesmo um toque surrealista. Não admira, pois Nuno se interessa por pintura, sendo ele mesmo pintor, fotógrafo, fazendo colagens que de tudo um pouco misturam (fazem ou desfazem) completando ainda a sua formação, ou apenas curiosidade (mas a curiosidade é que nos impulsiona, na ciência, na filosofia, na arte, como lembrou Stephen Hawking na última conversa com os seus estudantes, pouco antes de morrer) com o gosto pela música e pela filosofia. Na verdade é um poeta fora do comum, que eu definiria como filosofante. Um pouco à moda de Pessoa, em quem tudo o que escreve remete para um pensamento filosófico subjacente aos seus versos, mesmo os mais delirantes. Álvaro de Campos, o das viagens em que o delírio o toma, e quase faz dele um poeta libertário, excessivo nos apelos, nas palavras, nos ritmos  que lhes imprime, mesmo nele encontramos fundamentos que ultrapassam o jogo futurista. Os seus excessos são apelos,  e têm tudo a ver com o fazer e o desfazer das coisas que Nuno Félix escolhe para matéria poética. A verdade é que um criador não progride, na obra, sem primeiro desfazer o que fez. O que está feito está feito, e a vocação, se real, impele para outras coisas, ainda que desviantes em função do primeiro princípio idealizado ou proposto. Nuno Félix escolhe o desfazer e o já desfeito, mas na verdade é desse já desfeito que segue em frente, com o seu novo fazer, um Princípio que é outro e aguarda que seja descoberto. Mas terminemos, já agora, este poema de abertura:

Dissera na primeira estrofe, ” nada sei da minha consciência – qualquer coisa /ligada a um molho de células oriundas de um pai amando / uma mãe – Quase sempre é assim…”

E diz agora na última: ” Sempre atrás de mim o meu cérebro – Atrás do olhar – da voz / Como saber da consciência? Estarei bem mielinizado – do princípio / obscuro dos nervos até à flôr da pele onde a consciência se simplifica / no que sinto? No que vejo ao longe afastar-se e sei não ser eu?” (p. 14).

Saber ou não se saber quem é, se o eu se outro que se afasta, é produto já de uma consciência de si adquirida, algo que não se tem ao nascer. A criança nasce vinda não se sabe de onde, de uma cósmica esfera, no dizer dos Livro Tibetano dos Mortos, onde a sua essência aguardava que o desejo do homem lhe permitisse a materialização.

Assim nasce a criatura humana, e a ignorância do que foi, e do que é e do que venha a ser, é um dos raros momentos em que se poderia dizer que é feliz, porque o sofrimento vem com o saber, não apenas do cérebro cientificamente estudado, mas sobretudo do que falta, do que se inquire, e como se queixa Strindberg, recentemente dado a conhecer entre nós, pela mão de Cristina Carvalho – é tão grande a ânsia que nos toma, que por vezes nem na arte se encontra lenitivo. Contudo é na arte e só nela, sob as suas várias formas, que o criador se pode encontrar, no eu que a sua obra sublimou.

No poema seguinte, continuando num hermetismo que lhe apraz cultivar, Nuno Félix deixa contudo uma porta para os benefícios da arte, neste caso da escrita:

“A escrita abisma-se obriga ascende e quebra / a voz vidente – Fende o chumbo – a luz espreita e / revive um pouco mais” (p15). O chumbo é o peso que a palavra comporta e é necessário transportar para outro nível mais elevado da consciência, onde sem que o autor o diga logo expressamente, a palavra também se torna instinto, além de peso. Entra-se na esfera de uma irracionalidade que o cartesianismo não aceitaria, a do sentimento, embora tenha pretendido defender que só o pensamento valida a existência.

Alquímico é o chumbo que deixa passar a luz para que se reviva “um pouco mais”. Apologia da transformação que sublima, e que depois de um negro desfeito permite um branco refeito. O solve et coagula, dos filósofos herméticos…de que Jung, bem conhecido do nosso autor, como veremos adiante noutro texto, se ocupou. Este é um dos Princípios,  mas na verdade, na criação poética toda a matéria é livre e passível de se transformar. Daí o desfazer das coisas, no título, anunciar o solve como princípio, ainda que sem o nomear. A cultura de um poeta tanto serve para indicar um caminho como para o esconder, e é grande a cultura deste poeta, em variados domínios, o que nos obriga a leituras atentas.

No poema que intitula a cura ou Goethe quântico (p.16) introduz o conceito de tempo, como Heidegger o faria se vivesse agora: o tempo factor de separação, de divisão (enquanto o Ser pretensamente seria sempre de União, manifestação de um Uno indivisível, anterior ao tempo que ao surgir no Princípio (Génesis) logo introduz a divisão, separa as trevas da luz.

É o tempo que dá forma ao ser – desde logo o da criança, ao nascer. Pot isso o poeta lembra que o tempo separa: pois a forma, como nos versos do poema define o que o poema é.

” É difícil com a linguagem reconhecer os caminhos / que nos atravessaram floração prende o olhar e vemo-nos / reunindo as primaveras numa espécie de tempo cujas peças / se desajustam – Ecos de uma explosão opaca antecedem / o fundo da voz sem nos tocar o rosto e voam num cosmos que sem ver respiramos…”. O poema termina com a imagem cósmica que fatalmente teria de acompanhar a reflexão do princípio do tempo original: ” audaciosos actores de desabafos teóricos / ao colo de um universo que – sem assustar – se sustenta sem nós”. Nós não existíamos, no princípio dos princípios, surgimos ao sexto dia, quando o tempo nos separou de toda a matéria vegetal e animal entretanto criada. Quer isso dizer que somos mais, que somos menos? Seremos dispensáveis num universo “que se sustenta sem nós” ? Há uma certa amargura, feita de desilusão, no olhar de um cientista que embora sendo poeta não desconhece as falhas e faltas da nossa condição. Humana e limitada, descolada da transcendência que um Jung mais esperançoso lhe atribui, mas que um Freud mais cartesiano entende ser despicienda.

Tal como a reflexão sobre o tempo, o mundo das crianças atrai Nuno Félix, porque nelas se revê numa inocência que é dos primórdios de uma consciência que ainda se ignora como tal – com tudo o que o presente e o futuro lhe reserve.

Curiosa é no entanto a imagética animal que lhe ocorre, em contraste por vezes com o suave perfume de flores do hálito infantil que se respira no seu adormecer – imagens de animais que surgem com alguma violência destruindo um sono ou um imaginar, no poema, que devolvesse harmonia a uma tão pequena existência, intocada ainda (quanto sangue sem pedir a filha rouba…) O sangue que escorre do corpo da mãe que a dá à luz, mancha a pureza da criança acabada de nascer, já separada  e com outro destino. Ocorre então que o tempo não se limita a separar, mas nesse acto define também um destino. Não é por acaso que adiante o poeta afirma: “Hoje ter alma não é um risco – Pouco a usamos e não temos / que a salvar – apenas que a manter / limpa e nos limites do razoável” (p. 27).

A ironia atravessa muitos dos poemas, juntamente com elaborações de carácter científico que dão um tom quase surrealista, por inesperado, quando vamos embalados no verso de uma ideia ou de uma imagem especialmente interessante. O mesmo modo caímos, quando menos se espera, num quotidiano molho de amêijoa à espanhola, tendo já lido antes que a amêijoa é prima de sangue do búzio…um paladar de quotidiano faz cair no real quem esteja à espera de espiritualidades bacocas, pois nada disso cabe neste fazer e desfazer de coisas que são por vezes sublimes, por vezes quase banais pois a banalidade faz parte do quotidiano das vidas que nos são dadas a viver. Mais ainda numa sessão em que o médico tenha de pacientemente dar atenção aos seus pacientes. Merecerão todos eles essa especial atenção? E mesmo não merecendo, noblesse oblige, o médico tem de ser generoso, embora o poeta não.

O poeta pode, se sentir esse impulso, descarregar o negro que lhe pesa, desafiar os deuses em que não crê, desacreditar os filósofos que ignoram as causas mais profundas do sofrimento que esconde, oferecendo utopias jamais realizáveis em nosso tempo de vida. O que me devolve à questão do tempo, focada atrás: o que é, para este poeta, o sentido da vida? O sinal sem sentido do grande Hoelderlin, pois se perdeu a língua no distante? E o que é afinal a obra do poeta? Recuperar, refazendo, esse sentido por dentro do sinal? O título que deu ao livro é pessimista e não deixa antever mais nada para além do dizer o Desfazer e o já Desfeito. Mas voltando à questão do tempo, e do princípio, não haverá aqui uma contradição? Um desejo de recuperar, no poema, o ainda não feito?

No fecho do poema intitulado hipnotizados pelo suceder (p.25) lemos que ” a ironia retoma o mistério – Nem percebemos o que / ao suceder escapa – o que mantém a boa ordem das vagas / que se sucedem com absurda simplicidade”. O que veria Freud (Quand Freud voit la mer) nestas vagas de Nuno? O obscuro inconsciente, ou uma consciência imperturbável perante pequenas vagas  de absurda simplicidade?  Nada é simples, num poema, ou numa consciência que se procura entender a si mesma no mundo a que foi entregue, sem querer e sem saber. Nascemos e morreremos assim, sem querer e sem saber.

Em disputas doutrinárias (p.29) encontramos Freud e Jung como portas para uma felicidade variável. Postas de parte as personagens da infância o crescimento é possível, entre Buda ou um poema preferido, os mitos coexistem numa liberdade “libertina”,  aproximamo-nos de Jung, mas ficamos mesmo assim a meio caminho (não há soluções perfeitas para ninguém) reflectindo no que seríamos sem pais (Freud) nem mitos (Jung) sendo apenas o que somos numa “alegria mal pensada”.

Continuando uma leitura que não se pode esgotar aqui, iremos descobrir uma faceta que ultrapassa o inicial filosofar e se entrega a um surrealismo-abjectionista, ao gosto do fundador, Pedro Oom, e o grupo do café Gelo, de que destaco Cesariny, mas especialmente Luiz Pacheco, cuja Comunidade ainda hoje guardo no que chamo a estante dos amigos. Neste movimento a liberdade e o libertário das situações e da linguagem são totais, a raiva e o nojo, o ódio ao mundo, à sociedade normativa são descarregados com abundância por vezes quase chocantes, embora expectáveis, pois para isso se criou a associação livre de imagens, por muito chocantes que sejam para as boas almas que se escandalizarão – algo que se pretende por estes autores. É a Julia Kristeva que devemos uma reflexão ensaística, em 1980 (40 anos depois do arranque em Portugal) sobre a abjecção: O Poder do Horror, ensaio sobre a Abjecção. A Psicanálise, com Lacan e o seguimento post-freudiano valoriza, no post-modernismo, o culto do horror, do horrível,  do condenável na sociedade educada, ou tida como tal tal) como no início do século muito do Expressionismo na pintura e no teatro, mas o abjeccionismo literário neste desfazer e no já desfeito surge um pouco como surpresa. Passou-se da meditação sobre o Princípio, o gesto que inicia, e sobre o Tempo, a medida que separa, para uma dissertação que se afirma longe dos valores tradicionais mais óbvios, mais aceites, numa espécie de raiva que arrasa tudo num frenesim de desfazer o que estivesse (e fosse aceite como)  feito.

Mas o interesse deste livro não se esgota no desabafo súbito e por alguma razão necessário e libertador.

Muitas outras páginas, que podemos ir abrindo e lendo ao acaso, aliás maneira bem feliz de ler, porque sempre surpreende, iremos ao encontro da música (“quando pensamos num músico surdo queremos sentir / a compaixão dos sons enterrados num vulcão ou já vazios / pairando no seu puro contraste…/ e a revolta da música toma a pureza celestial / da crueldade quando o sentido se perdeu” (p.36). Alude a Beethoven, genial e já só podendo ouvir-se por dentro da cabeça, alheado de um mundo que o procura ou ignora, pois já não comunica a não ser com a sua oculta genialidade? Provavelmente.

Mas logo de seguida empurra-nos o autor para um outro mundo, menos musical, o de Descartes, todo pensamento e exíguo no sentimento, às voltas com um sonho recorrente que Marie-Louise von Franz nos conta e eu tentei analisar, num post antigo ” O melão de Descartes”.

Nuno escreve aqui “ignoro o que pensar de mim” (p. 37) como Descartes em carta a um amigo escrevia ignoro o que pensar deste sonho tão recorrente…A verdade, e Nuno Félix sabe disso, por força da sua experiência, sua e de outros, que não é o pensamento (a Razão, o Intelecto, mas a Emoção, o Sentimento) que nos podem abrir alguma frincha de súbita revelação. A lição já vinha de trás, com os Pietistas na Alemanha do século XVII-XVIII e os seus retiros espirituais nos conventos que o Conde de Zinzendorf lhes punha à disposição, para no silêncio da alma (essa palavra ainda hoje odiada, ou ignorada, o que é pior) a iluminação divina pudesse ter lugar.

Esse silêncio, de recolha e recato é o mesmo que o poema exige para dar voz às palavras que busca e virão ter com ele mais tarde ou mais cedo,  feitas, desfeitas, ou de outro modo qualquer, ajustadas à sua realidade. Saberá assim talvez mais qualquer coisa de si.

E regressamos “à origem do discurso”…o tal princípio. “Poderia ter sido de outra forma mas foi assim – concluímos”. Se antes falou de música, agora leva-nos para o mundo abstracto da pintura, com Klee. Mas é uma descrição de um quotidiano naturalista por onde passam formas tauromáquicas, trombas de porco, bicos de cegonha, ad cores que pelo meio se atropelam, nos despistam, nos distraem, de modo que o poeta conclui “falham alusões aos mitos – falham soluções – a esperança deslocaliza-se – talvez a alma não comporte / o que junta e na névoa voa com os rochedos ou o universo / não suporte o uníssono democrático” (p.41).

Matéria para reflectir. O que se pode encontrar num quadro que soma, mas não revela, não é essa a função dele, revelar cabe a quem consiga desfazer o amontoado de imagens, e suas resoluções.

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