Poderia existir Reforma Administrativa num quadro de ditadura?
A questão foi-me implicitamente colocada por uma leitora do meu livro As Secções Nacionais Portuguesas do Instituto Internacional de Ciências Administrativas (1908-2012) recentemente publicado, e merece ser tratada.
Não que o livro se debruce sobre os méritos da ideia de “Reforma Administrativa” ou dos programas reformistas em concreto. Nessa matéria sou ateu, ou pelo menos agnóstico. Aliás logo em 1953 em Editorial da Revue Internationale des Sciences Administratives, Pierre Seeldrayers alertava:
La réforme administrative est à la fois – comme la réforme gouvernementale – mythe et réalité. Elle est une réalité par les progrès qu´elle ne cesse d’ enregistrer de jour en jour. Elle est un mythe par les objectifs idéaux qu’ elle s´ assigne.
O mito da Reforma Administrativa que teria começado com Marcelo Caetano
Em relação a Portugal, um certo número de autores parece adoptar para a “Reforma Administrativa” uma periodização correspondente àquela que por vezes é adoptada para a evolução do regime politico, em que se distingue “salazarismo” e “marcelismo”, “estado novo” e “estado social”, apresentando o Governo de Salazar como uma espécie de “idade das trevas” e o Governo de Marcelo Caetano como de início da Reforma Administrativa, em que se criou o Secretariado da Reforma Administrativa, que terá afrouxado por “falta de vontade política” e foi retomada a seguir ao 25 de Abril.
Essa visão traduz-se por vezes em equívocos quanto à atribuição de responsabilidades ou quanto às datas dos acontecimentos:
- numa tese de doutoramento em comunicação social, defendida e publicada em 2009 na UNL, aliás de modo geral bem documentada e com preocupações de rigor, escreve-se “Na chefia do Governo, Marcelo Caetano apostou na coordenação sectorial para melhorar a organização do III Plano de Fomento (1968-1973). Criou o Secretariado Técnico da Presidência do Conselho…”, quando o Secretariado havia sido criado em 1962 e dinamizara, no quadro do funcionamento da Comissão Interministerial de Planeamento e Integração Económica (CIPIE) um conjunto de grupos de trabalho que contribuíram para a preparação do III Plano de Fomento, aprovado antes da ascensão de Marcelo à Presidência do Conselho de Ministros;
- num trabalho publicado no ISCTE-IUL em 2011 aponta-se o ano de 1969 como o da criação do Secretariado da Reforma Administrativa, que foi de facto criado em 1967 por um diploma assinado por um único membro do Governo: o presidente do Conselho de Ministros António de Oliveira Salazar, sendo portanto errónea a imputação dessa criação a Caetano;
- num artigo publicado na Revista de Administração e Emprego Público de Dezembro de 2016, no qual se procede a uma tentativa de periodização da evolução do regime de trabalho da função pública, o autor começa por considerar um período de 1968 a 1974, conotado com Marcelo Caetano, incluindo nele o diploma de criação do Secretariado da Reforma Administrativa, apesar de mostrar conhecê-lo aliás a obra legislativa da altura, circunstanciadamente descrita, é imputada ao referido Secretariado.
Esta espécie de “convenção” que atribui a Marcelo Caetano e ao período em que foi Presidente do Conselho de Ministros iniciativas de que não foi responsável, é tanto mais surpreendente quando há quem tenha já sustentado o contrário num Encontro realizado no ISCSP:
…O desinteresse – não sei se má vontade – pela reforma administrativa acabou o antigo professor de Direito por manifestá-la com indubitável clareza, acabando com o Secretariado da Reforma Administrativa. O Decreto-Lei nº 622/70, de 18 de Dezembro, veio fundi-lo na Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, onde lhe atribuiu uma simples Direcção de Serviço”.
Para uma visão mais aprofundada da evolução do pensamento sobre reforma administrativa
O Salazar dos primeiros 20 anos, ou seja de 1928 a 1948, passa por ter realizado uma reforma administrativa incidente sobre o funcionamento dos organismos, e naturalmente sobre as suas despesas orçamentais, por ter apelado logo em 1929 a uma análise da eficiência destas (a confiar a uma Intendência Geral do Orçamento que nunca saiu do papel), e não apenas da sua correcção jurídica, por ter acabado por restabelecer o prestígio do funcionalismo alterando o seu regime jurídico e a sua forma de recrutamento, devendo-lhe igualmente algumas tiradas contra a burocracia, perfeitamente integradas no pensamento da época. Além do mais para preparar algumas das suas medidas mais emblemáticas apelou à participação dos serviços, fazendo inquéritos.
Nos vinte anos seguintes, ou seja nos anos 1950 e 1960, a “eficiência”, a “mecanização” e a “simplificação administrativa” surgem como bandeiras em vários momentos, e, mais tarde, também a definição urgente de um estatuto de função pública que fixasse os funcionários, sendo de referir o papel do Ministério das Finanças, especialmente durante o consulado de António Manuel Pinto Barbosa enquanto Ministro, dos Ministérios das Economia e das Obras Públicas, articulados a nível de Directores Gerais numa experiência muito inovadora para a época, das Corporações e do Ultramar, com um peso crescente da Presidência do Conselho e dos seus Secretariado Técnico e Secretaria-Geral. Como já aqui dissemos, coube ao Grupo de Trabalho nº 14 – Reforma Administrativa da CIPIE propor a criação do Secretariado da Reforma Administrativa e outros diplomas. Este grupo de altos funcionários não se interrogou sobre se as suas propostas requeriam ou não uma prévia restauração de liberdades democráticas e, no que parece ter sido uma gestão táctica do processo, formulou-as como se representassem uma indiscutível continuidade das reformas de Salazar.
Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano desenvolveu no plano da Administração Pública uma acção que não está ainda devidamente avaliada e que não deve ser aferida pela fidelidade à formula “Secretariado da Reforma Administrativa”. Este inicialmente funcionara sob orientação de um dos seus próximos, o Secretário-Geral da Presidência do Conselho de Ministros Diogo de Paiva Brandão, depois de um Director-Geral por si nomeado, e dois anos depois integrou-o na Secretaria Geral (de acordo aliás com a sua visão estratégica já antiga, para este departamento) para de novo o autonomizar como Secretariado da Administração Pública em 1973. Comprovei contudo, através de várias fontes, que as funções definidas nunca deixaram de ser asseguradas.
O que o 25 de Abril trouxe aqui, para além da possibilidade de ir mais além na melhoria do regime jurídico de pessoal, aliás no sentido de reformas que vinham sendo propostas desde os anos 1960, e de permitir a criação de sindicatos da função pública foi a própria expansão dos serviços, que, assumindo muitas vezes denominações discutidas no Grupo nº 14: Serviço Central de Pessoal, Direcção-Geral da Função Pública, Gabinetes de Organização e Métodos, Instituto Nacional de Administração, etc, integrados num departamento governamental com nível quer de Secretaria de Estado quer de Ministério, em breve deram origem a uma situação de inflação orgânica que, levou, primeiro, à criação de um Gabinete de Estudos e Coordenação de Reforma Administrativa, depois à sua fusão numa Direcção-Geral da Administração Pública enquadrada num Ministério das Finanças e à criação, na dependência directa do Primeiro-Ministro, de um Secretariado da Modernização Administrativa como estrutura ligeira portadora de uma nova esperança para as reformas.
Não estou totalmente certo de que um desenvolvimento deste tipo não pudesse ter sido acomodado num regime autoritário mais ou menos liberalizado, ou como é também habitual dizer-se, numa “transição à espanhola”. É claro que, como se verificava já a partir da segunda metade dos anos 1960, iria participar nos processos um maior número de quadros técnicos, que sentiriam a necessidade de se congregar em associações científicas ou profissionais, e tudo isso iria pôr em causa as limitações à aprendizagem de novas disciplinas e à livre expressão do pensamento.
Onde a democracia se tornou imprescindível e inadiável na definição da agenda das reformas administrativas
O passo decisivo no caminho de reformas administrativas que não seriam possíveis sem a democracia foi, a meu ver, a assunção pelo poder político de que os cidadãos tinham direitos perante a Administração Pública, antes de mais o de serem informados, o de verem as suas pretensões decididas em tempo útil, o de poderem reagir graciosa e contenciosamente. Assunção essa que, implícita no 25 de Abril, só teve consequências tangíveis algum tempo depois.
Os programas de informação do público e de desburocratização do ciclo de Modernização Administrativa de Cavaco Silva/ Isabel Corte Real tiveram impacto visível e, felizmente, criaram uma habituação, uma vez que se revelaram politicamente rentáveis. Foram-se sucedendo outros ciclos, como os da Reforma do Estado e da Administração Pública de Guterres, Reforma da Administração Pública de Durão Barroso, Modernização da Administração Pública de José Sócrates, tudo rótulos de marketing politico para programas cujas medidas ou se anularam umas às outras ou acabaram por não lograr efeitos visíveis, mas todas foram acrescentando alguma coisa neste domínio – as lojas do cidadão, o funcionamento em rede, as várias edições do simplex… Ah, e também se falou de uma Reforma do Estado que teve direito a um powerpoint de Paulo Portas.
Aqui também há antecedentes pré-25 de Abril, como o sistema de informação ao contribuinte que data dos anos 1960, e a defesa de uma regulamentação do processo administrativo gracioso, feita tanto por Eduardo Sebastião Vaz de Oliveira como por Marcelo Caetano, mas que no pós 25 de Abril não tiveram concretização imediata, aliás surgiram vários projectos de Código do Processo Administrativo Gracioso antes de finalmente ser publicado em 1991 um Código do Procedimento Administrativo.
Quanto à garantia de que houvesse “recurso contencioso de todos os actos administrativos definitivos e executórios que sejam arguidos de ilegalidade” foi introduzida por Marcelo Caetano na sua revisão constitucional de 1971, sem que o caminho deixasse de estar eriçado de espinhos processuais, em 1982 abriu-se a porta à colocação de acções de reconhecimento de direitos e desde aí têm-se publicado e revisto Códigos, só faltando mesmo resolver um problema que são… os próprios Tribunais Administrativos.
A luta dos administrados contra a burocracia pouco propícia, ainda hoje, ao envolvimento dos cidadãos, era protagonizada em meados dos anos 1960, só recentemente me apercebi, pelas… Corporações. Não deixa de ser curioso que quando em 1991 surgiu o Código de Procedimento Administrativo os administrados que dele fizeram inicialmente mais uso para defesa dos seus direitos tenham sido os funcionários públicos. Assim como que os maiores beneficiários do robustecimento do contencioso administrativo tenham sido os grandes grupos económicos e os grandes escritórios de advogados.
Pese embora este efeito, talvez inevitável, estamos, creio, muito melhor do que estávamos.
Viva o 25 de Abril!
Apogeu, Morte e Ressurreição da Política nos Jornais Portugueses – do Século XIX ao Marcelismo, de Carla Baptista, 2009, pp. 372-373.
Decreto-Lei nº 44 652, de 27 de Outubro de 1962.
Decreto-Lei 48 058, de 23 de Novembro de 1967.
“Contextos e etapas de reforma na Administração Pública em Portugal”, de Carla Gouveia e outro autor.
“Breve evocação do regime de trabalho da função pública”, de João Vargas Moniz.
“A reforma administrativa em Portugal: os primórdios, a teoria, a panorâmica e a finalidade”, Júlio Dá Mesquita Gonçalves, 1999.
Alguns dos seus elementos contudo aspiravam a soluções autenticamente democráticas, como revela Pedro Pezarat Correia a propósito dos seus contactos com José Maria Myre Dores, um das figuras emblemáticas da Produtividade Administrativa, Pezarat Correia – do lado certo da História, 2018, pp. 154-155.
Proibida pelo Estatuto do Trabalho Nacional do Estado Novo, que Marcelo Caetano nunca veio a revogar e completou em Setembro de 1973 quarenta anos de vigência, mas que durante os primeiros anos da democracia. aguardou num limbo legal a definição das suas condições de actuação, ilustrando o princípio de que os direitos se conquistam exercendo-os.