Doris Lessing dizia que havia algo “abrasivo” nela, que irritava as pessoas. Mas, como escritora, ela não poderia se importar com o que os outros pensam: “Somos livres… Posso falar o que penso. Temos sorte, somos privilegiados, então por que não usar isto?”
Li o livro de Doris Lessing (O amor, de novo) – publicado no Brasil em 1996 ou 1997 – há muitos anos. Não me lembro dos detalhes, sei apenas que a protagonista era idosa.
Na época da leitura, provavelmente, eu tinha uns 35 anos. Sentia-me bem distante da realidade “ficcional” abordada pela autora iraquiana, que finalmente recebeu o Nobel de Literatura em 2007.
Apesar da falta de afinidade com a protagonista, fixei uma cena em minha memória que vou tentar reproduzir com distorções inevitáveis que a passagem do tempo e a minha emoção acrescentam.
A mulher está com a possibilidade do amor no pensamento, saindo do quarto em que dorme. Acaba de fechar a porta, volta a abri-la, inspira fundo e procura perceber se deixou no cômodo vazio algum cheiro de “velhice”. O cheiro, concebe em sua imaginação, poderá sinalizar a aptidão, ou não, para estabelecer novo relacionamento.
Lembro-me do quanto aquela imagem me perturbou. Pus-me a investigar se velho tinha cheiro. Pensei no meu avô e padrinho tão querido, ele tinha um cheiro sim, que eu adorava desde muito pequena. Não posso definir.
Cheiro é impalpável, no entanto, nos envia com passagem sem bilhete de volta ao passado. Instantaneamente. Pensei também no cheiro de naftalina, presente em algumas casas de tias e tios esquecidos na infância.
Hoje revisito Doris Lessing e seu romance, ainda estou distante dos 60 anos, mas muito mais afinada com as questões da longevidade, o amor e a mulher.
Se, nos 1990, já era uma estranheza enorme ver uma senhora sessentona pensar em encontrar um namorado, hoje é mais natural; o que não muda o fato de a mulher precisar cuidar do “cheiro”, dos cabelos brancos, das peles frouxas e, principalmente, dos sonhos românticos, com muito mais dedicação do que o homem.
Há um fato biológico inegável: o homem pode ter filho aos 70 anos. A mulher até pode, se for muito rica e morar em países como os Estados Unidos da América, que já disponibilizam técnicas avançadas na área. Com certeza, criar o filho nascido tarde – após os 50 – é tarefa exigente e a mulher sabe que terá de dar mais do que o homem nessa empreitada senil.
Mulher controvertida
O filho possível, vale recordar, é o grande atrativo da mulher na fase fértil, trata-se de mecanismo que as ciências sociais e antropológicas já decifraram desde antigas civilizações.
Problema da prole resolvido, ainda assim, o namorado para a senhora com mais de 65 anos apresenta-se mais dificilmente.
A editora e as livrarias tradicionais, como a Cultura, não têm mais o produto. É preciso buscar em algum sebo.
Comparo a falta, bastante comum, com a literatura atual em todo o mundo. Comparo porque a busca no site da Livraria Cultura me remete a infinitos títulos com a palavra “amor”, a maioria lançada recentemente. Não há Dóris Lessing, são jovens autores.
Vale lembrar que, em sua obra, a autora tratou de temas diferentes que iam desde justiça social, passando pelo feminismo e até ficção científica.
Polêmica, atraiu a fúria de muitos norte-americanos ao sugerir que os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 não foram tão terríveis quando comparados à campanha do IRA (Exército Republicano Irlandês) na Grã-Bretanha.
As declarações foram típicas da escritora que nunca evitou controvérsia.
A Guerra
Doris May Tayler nasceu em Kermanshah, na Pérsia, (atualmente, oeste do Irã) onde o pai, britânico, era caixa no Imperial Bank of Persia.
Em 1925 eles se mudaram para a Rodésia do Sul (Zimbábue),
para gerenciar uma fazenda, um negócio que não deu certo para a família.
A infância da escritora foi dominada pela mãe, determinada a fazer com que a filha obedecesse as regras da época. Mas, junto com o irmão, Lessing escapava para a florestas e savanas.
Os pais chegaram a enviar a autora para uma escola de meninas em Salibury (que hoje é Harare), mas ela saiu de lá aos 13 anos, encerrando sua educação formal, e começou a alimentar a imaginação com os livros que chegavam sob encomenda da Inglaterra.
Nesta época, Lessing começou a ler autores como Dickens e Kipling, além de inventar histórias para o irmão.
Lessing chegou a comentar que infâncias infelizes parecem produzir bons escritores de ficção.
“Claro, eu não estava pensando em termos de ser uma escritora. Apenas pensava em como escapar, o tempo todo”, disse.
A autora também foi influenciada pelas memórias do pai, que lutou na Primeira Guerra Mundial e voltou mutilado.
“Todos nós fomos feitos pela guerra, retorcidos e deformados pela guerra, mas parece que nos esquecemos disso”, escreveu.
Comunismo e feminismo
A escritora saiu de casa aos 15 anos e teve vários empregos, enquando aprofundava suas leituras sobre política e sociologia. Em 1937, morando em Salisbury, ela se casou com Frank Wisdom, com quem teve dois filhos.
O casamento não deu certo e ela deixou a família.
Ainda em Salisbury, ela se envolveu com um grupo literário comunista. Um dos membros era Gottfried Lessing, um judeu exilado, com quem ela se casou. Porém, este casamento também não durou.
Decepcionada com o comunismo e com a África, ela se mudou para Londres e publicou em 1949 seu primeiro livro, A Erva Canta (The Grass is Singing).
O livro sobre o caso entre a esposa de um fazendeiro branco e um empregado africano se transformou em best-seller e revolucionou a forma de mostrar um relacionamento entre raças diferentes.
Mas, o livro mais famoso de Lessing é O Carnê Dourado, de 1962, uma história muitas camadas sobre as diferentes áreas da personalidade feminina.
Este livro transformou Lessing em um ícone do crescente movimento feminista, algo que ela rejeitou.
“O que elas realmente queriam que eu dissesse é ‘ah, irmãs, estou ao seu lado em sua luta pela aurora dourada quando todos aqueles homens bestiais não existirem mais’. Elas realmente querem que as pessoas façam declarações simplificadas demais sobre homens e mulheres?”, questionou a autora.
Ficção cientifica
No final dos anos 1970, Lessing lança a série de livros Canopus in Argos, de ficção científica, em que retrata um futuro sombrio, marcado pela tirania e catástrofes naturais.
Mais recentemente, a autora lançou livros como A Boa Terrorista, em 1985, uma sátira à política, e O Quinto Filho, em 1988, um relato do sofrimento de uma família com um filho violento e antissocial.
Lessing disse que a inspiração para o livro veio em parte da experiência dela, que teve um filho aos 19 anos, e da mulher na cama ao lado naquela ocasião, que já tinha duas meninas e que estava rejeitando o filho que tinha tido.
Em outubro de 2007 ela se transformou na escritora mais velha a receber o prêmio Nobel de literatura.
Lessing dizia que havia algo “abrasivo” nela, que irritava as pessoas. Mas, como escritora, ela não poderia se importar com o que os outros pensam.
“Somos livres… Posso falar o que penso. Temos sorte, somos privilegiados, então por que não usar isto?”
A autora escreve em Português do Brasil