Uma tragicomédia em vários atos.
Ato 1 – O Referendo
Uma arma usada por um governo pressionado (de David Cameron), confiante num final a seu favor e confrontado com um resultado inesperado: voto maioritário a favor da saída da EU. Enquanto alguns culpavam a própria questão colocada no referendo, outros argumentavam que o resultado foi um voto de protesto contra políticas de austeridade, fomentado com medos infligidos sobre um suposto perigo de entrada de imigrantes ilegais em massa e sem controle sobre os mesmos.
Tudo isto coberto por uma profunda desconfiança de Bruxelas, fomentada durante décadas por políticos incompetentes, sempre à procura de um bode expiatório para encobrir os seus próprios falhanços. Assim, nunca o Reino Unido se sentiu verdadeiramente parte da UE, do próprio projeto Europeu.
Ato 2 – As Negociações
Ou melhor, a falta delas. A tática seguida após o referendo pelo governo de Sua Majestade baseou-se no princípio, “dividir para reinar”. Ao longo da história da UE foram raríssimas as ocasiões em que os países membros estiveram todos de acordo sobre qualquer assunto que fosse, dos mais básicos aos mais complicados, havendo sempre algum ou alguns membros que discordavam da opinião em geral. Assim, os Britânicos optaram por esperar, não tomando qualquer iniciativa, aguardando mesmo pela desunião entre os demais membros da União Europeia.
Tática esta que falhou estrondosamente. A UE, confrontada com o desejo da saída de um dos seus membros, percebeu, de imediato, que uma tal saída nunca poderia ser vantajosa para quem quisesse deixar a família Europeia, caso contrário daria azo a outros “exits” , levando, no limite, ao desmoronamento da própria UE. Assim, foram formados vários grupos de trabalho para preparar o Brexit, constituídos por pessoas altamente especializadas em assuntos Europeus e defensores da mesma causa comum, a UE. Passados seis meses após o referendo, já a UE tinha preparado os “white papers” com as linhas gerais para a saída do Reino Unido, documentos estes que continuam em vigor até à data, e que foram subscritos por todos os remanescentes membros da UE, sem exceção, em total sintonia e em uníssono. Um caso único na história da UE!
Enquanto a UE fala a uma só voz, o Reino Unido já nomeou três ministros responsáveis pelo Brexit: David Davies, Dominic Raab e, atualmente, Stephen Barclay, sendo que as negociações finais são lideradas pela própria primeira-ministra Britânica Theresa May. Quando, tardiamente, os Britânicos se aperceberam que não haveria desunião entre os membros da UE, entraram em pânico pela falta de tempo para uma preparação ordenada do Brexit, disparando em todas as direções e tentando culpabilizar Bruxelas pelos seus próprios fracassos e fraquezas. A incompetência chegou ao ponto do próprio Dominic Raab afirmar que desconhecia a importância da ligação entre Dover e Calais para as ligações económicas entre o continente e o Reino Unido…
Ato 3 – Reta final (ainda) sem fim à vista
Mandatada por força do referendo para negociar a saída do Reino Unido da União Europeia, Theresa May negociou um acordo de saída, partindo do princípio que, “antes um mau acordo do que um no-deal”. “Um escândalo”, gritaram inicialmente os mais fervorosos Brexiteers. Os mesmos que, curiosamente, nunca apresentaram – e continuam a não apresentar – alternativas para o acordo conseguido. O Reino Unido conseguira superar todas as dificuldades de um no-deal, e todos sabemos dos múltiplos cenários de dificuldades que o Império Britânico teve de enfrentar ao longo de séculos, sobrevivendo sempre. Arreigados à visão de um passado histórico brilhante, a visão foi-se, no entanto, desvanecendo, com avisos dos agentes económicos alertando para um desastre eminente no caso de no-deal. A ponto de alguns dos mais conhecidos Brexiteers, como Boris Johnson, Michael Gove e mesmo Dominic Raab, já terem vindo a público afirmar que o acordo negociado é melhor que um no-deal. Outros radicais Brexiteers continuam a querer uma saída da UE, ao mesmo tempo que pretendem a renegociação do acordo. Por parte de Bruxelas já foi reiteradamente afirmado que o acordo negociado é o melhor possível e o único a seguir, não havendo concessões. Interessante saber-se que o principal partido da oposição, o Labour Party, também não apoia o acordo alcançado.
Mas quem serão os principais prejudicados por um Brexit desordenado, senão os trabalhadores da classe operária e a própria classe média?
À beira do abismo, os fanáticos radicais continuam a lutar por um Brexit conturbado e desorientado. Contudo, parece que a força e as vozes da razão começam a ganhar terreno. As preocupações económicas surgem em ameaça e em importância; afinal de contas, é a economia que governa o mundo e o RU representa um papel e uma parte importante dentro dele.
Neste momento vários cenários ainda são possíveis até um segundo referendo, a ter lugar. O governo pode cair, seguindo-se novas eleições; o Brexit pode ser revertido, e pode haver um no-deal… Até o próprio Reino Unido se poderá desintegrar; suprema ironia, quando o objetivo do Reino Unido era a desintegração da União Europeia! Dentro do próprio RU, temos a Escócia, europeísta convicta, que quer ficar na UE; a questão da República da Irlanda e a sua relação com a Irlanda do Norte, com ou sem fronteira … O caos é total e está instalado.
Um país dividido, um partido (conservador) em ruínas, e a questão que se coloca é a que ponto uma simples pergunta de um aparente pacífico referendo pode chegar. Certo é que ninguém antes do referendo imaginou tamanho tumulto e tamanho ruído.
E tudo isto acontecendo num mundo cada vez mais extremado, com os velhos fantasmas do fascismo a ressurgirem, fora e dentro do Velho Continente, já por si enfraquecido, e onde só com a união de forças e esforços poderá sobreviver contra ventos e marés.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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