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João de Sousa

Sábado, Novembro 2, 2024

O canto de guerra dos Kayapós

Tereza Cruvinel, em Brasília
Tereza Cruvinel, em Brasília
Jornalista, actualmente colunista do Jornal do Brasil. Foi colunista política do Brasil 247 e comentarista política da RedeTV. Ex-presidente da TV Brasil, ex-colunista de O Globo e Correio Braziliense.

Desde ontem um grupo de Kayapós mantém o bloqueio da rodovia 163, na altura de Novo Progresso, no Pará. Entoando cantos de guerra, e batendo com seus varões no asfalto, eles queimaram uma carta da Funai que não atendeu à principal reivindicação deles – a renovação do Plano Básico Ambiental-Indigena (PBA-I)

Num Brasil silenciado pela pandemia, em que boa parte da população fecha os olhos para a negligência sanitária e a incompetência econômica do governo, graças ao auxílio emergencial providenciado pelo Congresso e apropriado por Bolsonaro, o som de resistência que se ouve vem dos índios. Desde ontem um grupo de Kayapós mantém o bloqueio da rodovia 163, na altura de Novo Progresso, no Pará. Entoando cantos de guerra, e batendo com seus varões no asfalto, eles queimaram uma carta da Funai que não atendeu à principal reivindicação deles – a renovação do Plano Básico Ambiental-Indigena (PBA-I), que consiste no financiamento de projetos que compensem os impactos da construção da rodovia que cortou as terras deles. O plano foi instituído em 2008 e interrompido no governo Bolsonaro, que deveria tê-lo renovado no ano passado.  A disposição é de resistir ainda que corra sangue.

Se eles não resolverem o problema, se eles mandarem a Polícia Federal, a Polícia Civil, Forças Armadas, este asfaltado aqui na derramar de sangue. Sangue de policiais, sangue de não-indígenas e sangue nosso. Eles têm que vir aqui conversar com a gente – disse um dos caciques na manifestação de ontem em que queimaram a carta da Funai.

O cacique Geraldo, com a carta na mão, fala algum tempo em língua indígena, e depois em português: “A carta que foi enviada pela Funai, por essa Carla Fonseca, não é nada, não diz nada,  e por isso ela vai ser queimada aqui na frente de todos vocês”.

No vídeo que me chega, a carta é solenemente queimada, e depois vêm os gritos de guerra: “Ula, Ula, Ula,  êêê”. As interjeições vão mudando, o ritmo também, mas a cantoria de guerra se estende por uns dez minutos.

Numa carta enviada hoje (20 de agosto) ao presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, eles cobram a continuidade das ações do PBA-I, com repasses ao Instituto Kabu, ONG que os representa.  Embora a Funai seja a mediadora, é o DNIT que financia os projetos de compensação pelo impacto ambiental da construção da rodovia que cruzou as terras indígenas Baú e Menkragnoti. Os Kayapós  prometem manter o bloqueio, impedindo a passagem das carretas que transportam grãos rumo aos portos paraenses, e avisam: “O que vai acontecer aqui a partir de hoje vai ser de responsabilidade do governo federal”.

E sabe-se lá o que pode acontecer, em se tratando de um governo que não dissimula sua hostilidade aos povos indígenas.  A BR-163 é a principal via de escoamento de grãos do país. As filas de caminhões chegaram a ter 5 km de extensão entre ontem e hoje.  A estrada foi reaberta à noite mas fechada novamente hoje. Na segunda-feira, a Advocacia Geral da União obteve na Justiça Federal de Itaituba (PA) uma ordem de reintegração de posse, em que a juíza reconheceu a legitimidade da luta indígena mas sugeriu que busquem outras formas de protesto, “sem violar o direito de outras pessoas”. O governo ainda não se valeu da força para fazer cumprir a decisão mas este pode ser o próximo passo. E como a disposição deles é para resistir, ainda que corra sangue, a situação é delicada. Perigosa mesmo.

A reivindicação principal deles é a continuidade das ações do PBA, que foi instituído em 2008, com construção da rodovia, e renovado em 2014, mas venceu no ano passado. Deveria ter havido uma prorrogação para o período 2020-2024 mas o governo Bolsonaro desconversa e não dialoga sobre a renovação.

O PBA consiste no financiamento de projetos sustentáveis, como o plantio e colheita de castanha, o plantio de mandioca e fabricação de farinha, o plantio de outras frutíferas amazônicas e a produção de artesanato.  A Funai alega que eles já tiveram as devidas compensações e que os projetos em discussão são muito caros, chegando a mais de R$ 60 milhões. Os índios dizem que o custo não passa de R$ 5 milhões anuais. Em junho o DNIT prometeu liberar R$ 2,3 milhões para alguns programas ambientais, até que se chegasse ao acordo de renovação do PBA, mas o dinheiro não saiu. Com protelações e questionamentos, o governo esgotou a paciência dos Kayapós, e agora temos na BR-163 uma situação explosiva.

A luta Kayapó, neste momento, é um canto de resistência num país sonolento, que precisa ser ouvido.

Ou será que a mídia vai esperar que o assunto ganhe as páginas internacionais para tratar do conflito?

 


Texto original em português do Brasil



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