O recente caso suscitado pelo eventual fim da “Cornucópia” levanta uma série de questões que têm andado adormecidas na opinião pública e outras que se levantam pela forma como o poder político (neste caso, o Presidente) agiu.
O apoio do Estado às artes
Começo por dizer que gosto de teatro (embora não o frequente muito), que o meu autor preferido é Luigi Pirandello (por causa da sua dramaturgia de inspiração filosófica) e que até fui fundador e director de uma Revista de Teatro (“Adágio”, do Centro Dramático de Évora) durante cerca de dois anos. Acrescento que defendo o apoio do Estado às diversas formas culturais que, pela sua própria natureza, têm dificuldade em sobreviver com recursos provenientes de uma sua exclusiva exposição ao mercado cultural.
E o teatro está nesta situação. Talvez até mais do que a dança (que, lamentavelmente, com a extinção do Ballet Gulbenkian, só quase parece existir para fins de obtenção de subsídios do Estado, através de projectos pessoais). Também considero que o próprio Estado poupa muitos recursos ao dispensar-se de, ele próprio, ter a seu cargo estas práticas culturais tão necessárias à formação estética e cultural dos cidadãos e, em particular, dos jovens.
Ao subsidiar as companhias de teatro independentes, o Estado garante a presença no nosso tecido cultural, formativo e performativo, desta importante arte, sem ter que assumir directamente os encargos com os recursos humanos nela envolvidos. Sendo certo que o Estado deverá ele próprio garantir companhias nacionais de referência no domínio das artes, também é claro que estas artes não poderão ficar reduzidas a elas.
Redes de companhias independentes poderão garantir com eficácia a resposta às exigências do sistema. Mas é claro que para isso têm de ser apoiadas. O teatro não pode ficar confinado à leitura de dramaturgias. Elas têm de ser postas em cena e partilhadas por espectadores.
Posto isto, devo confessar que a posição da Cornucópia me soa a chantagem e a pretensão de tratamento privilegiado relativamente a outras companhias. Uma chantagem prontamente acolhida pelo Presidente e logo, e obrigatoriamente (nem que fosse por mero dever protocolar), assumida pelo Ministro da Cultura.
Com a negociação a ocorrer em pleno palco da Cornucópia. Ou seja, quase como uma estranha peça de teatro, com actores improváveis. E com algo de pirandelliano à mistura, visto o papel ambíguo dos personagens (um Presidente, um Ministro e um Actor ), a sua duplicidade funcional e a natureza do próprio espaço cenográfico em que decorreu a cena.
Desconheço, de facto (por falta de informação) as reais necessidades da Companhia, mas parece que as instalações são garantidas e um valor anual – considerado insuficiente – de 309 mil euros, também (valor registado em 2015). Suponho que a Companhia deverá obter também receitas provenientes de bilheteira, como será natural. Mas compreendo que estas receitas (de bilheteira) sejam insuficientes para garantir o seu funcionamento.
Do que se sabe é que a Cornucópia não tem dívidas (o que corresponde a uma espécie de estado de graça) e vai deixar-se morrer com 309 mil euros anuais, em espaço garantido. Talvez não seja mesmo uma questão de sobrevivência! Mas, provavelmente, estou enganado!
Chantagem?
Leio também que Luís Miguel Cintra e a sua Companhia pretendem adquirir um estatuto especial, estando em negociações para isso.
Não critico a Cornucópia por lutar por boas ou melhores condições financeiras para desempenhar a sua tarefa, reconhecidamente de qualidade. É humano e compreensível. Mas parece-me que o Ministério da Cultura – queira o Presidente ou não queira – deverá ter sempre muito presentes, por um lado, (a) o princípio da igualdade – e não só em relação às outras companhias, mas também às empresas – na redistribuição dos recursos provenientes da cidadania para oferta de bens públicos essenciais, por outro, (b) o devido respeito pelos contribuintes que alimentam, com os seus recursos privados, o Orçamento de Estado, não tendo a esmagadora maioria subsídios para as suas actividades, e ainda (c) a devida e prudente distância relativamente a pressões ou chantagens, venham elas de onde vierem.
Neste sentido, a intervenção do Presidente, na forma que se conhece, e por mais leveza que Marcelo Rebelo de Sousa tenha emprestado a este seu gesto (quase privado), foi completamente errada, na forma e no conteúdo, até porque condicionou pesadamente e de forma pública e directa a acção do Ministro, cedendo clamorosamente à pressão de Luís Miguel Cintra e menorizando a figura, pessoal e institucional, de Luís Filipe de Castro Mendes (e consequentemente o Governo).
A democracia, como, aliás, o próprio teatro (e, de resto, toda a arte), precisa de alguns rituais para ela própria se densificar, ganhando corpo e respeito perante a cidadania. Mas o palco nunca será o melhor lugar para a negociação. Será certamente bom para a representação, mas não para a negociação. E nem sequer para um Presidente que parece ainda não ter conseguido sair desse mesmo palco que lhe foi sempre tão familiar ou mesmo íntimo.
Depois, a negociação também não pode ser justa e equilibrada quando uma das partes radicaliza de tal modo a sua posição que motiva uma intervenção intempestiva do Presidente da República, acabando por assumir, ele próprio, as dores desse palco para onde inopinadamente subiu ou do qual, afinal, nunca chegou a sair.
A representação, no seu máximo esplendor, que encapsula o poder executivo e a própria política. Com tantas empresas em dificuldades, é de temer que o Presidente não consiga ir a todas…
Uma reforma profunda
Mas a verdade é que ainda consigo ver uma vantagem neste lamentável episódio: a de pôr o problema do teatro e dos subsídios finalmente na agenda. E o Ministro só se sairá bem desta sua menorização se aproveitar a ocasião para responder ao Presidente com uma reforma profunda do sistema, envolvendo também nisto o ensino artístico, o teatro, a dança e a música.
E, já agora, inspirando-se nas ideias do Schiller das Cartas Sobre a Educação Estética do Homem e da sua utopia do imperativo estético, ou seja, colocando a educação estética como o pilar de uma nova e mais rica cidadania. Como poeta nem lhe será muito difícil interiorizar isto.
O episódio tem, contudo, uma importância simbólica muito maior do que a sua própria causa. Mas, como tudo na vida, nele poder-se-á valorizar a parte negativa (o poder que se agacha ao mínimo suspiro de um actor bem cotado na praça das artes) ou a parte positiva (uma reforma profunda que vise relançar as artes em Portugal).
Sou, naturalmente pela segunda e incomoda-me profundamente a primeira. Porque, não sendo boa para a democracia, é óptima para o lobbismo.