… na sequência do Referendo que acaba de se realizar, com uma pesada derrota do Governo e do Partido Democrático. Havia razão para isso. O euro acaba de cair a pique (informação da Agência Bloomberg), depois do anúncio de Renzi. Grandes meios de comunicação tinham-se pronunciado de forma mais ou menos intensa e diferenciada sobre o perigo: New York Times, Financial Times, The Economist, entre outros. Em Portugal, o tema ganhou também relevo mediático.
E qual era realmente a questão? Um Referendo sobre a Constituição em torno da mudança de composição e de poderes do Senado italiano (ou seja, superação do chamado “bicameralismo perfetto”, com drástica redução da dimensão, da natureza e dos poderes do Senado) poderia provocar um tal desenvolvimento político que, por um lado, provocasse, uma drástica retracção do sistema financeiro internacional relativamente a Itália e mesmo à Europa e que, por outro, pudesse levar à saída do Euro e até da própria União.
O que realmente se verifica é que, tendo vencido o “Não”, o Partido Democrático (PD) sai derrotado e o vencedor proclamado será o Moviment5Stelle (M5S), apesar da frente do “Não” ser mais ampla, envolvendo toda a oposição que conta (Lega Nord e Forza Italia) e até uma parte do próprio PD. A verdadeira questão já tinha, de facto, deixado de ser a Constituição para passar a ser o Governo e o seu líder, Matteo Renzi. Que acaba de reconhecer a derrota: “Ho perso (…). L’esperienza del mio governo finisce qui”.
O “Movimento Cinque Stelle”
Na verdade, o M5S defende um Referendo sobre a saída do Euro. E é também por esta via que o perigo se insinua. Até porque o fim da Lira sempre foi uma matéria muito sensível e dolorosa para os italianos. Sentiam-na, a Lira, como se fosse a sua própria pele. Ou seja, o que estava em causa já não era tanto a reforma constitucional quanto a dinâmica política interna e as próprias relações com o Euro e com a União. O M5S é o directo concorrente do PD e as sondagens têm atribuído a estes partidos percentagens eleitorais equivalentes (em torno dos 30%, com ligeira vantagem para o PD, estando os outros dois grandes partidos, Forza Italia e Lega Nord, muito afastados, entre 17 e 20 pontos percentuais).
PD e M5S
O PD é um partido de centro-esquerda e o M5S é um partido digital neopopulista, defensor da democracia directa, contra o establishment político e o establishment mediático. Defende uma cidadania digital, habita num portal digital, não tem corpo orgânico disseminado pelo território, mas tão-só porta-vozes, e tem uma referência carismática, um nume tutelar que garante a sua coesão, Beppe Grillo.
Até tem uma Utopia: “Gaia – The Future of Politics”, gizada pelo falecido Gianroberto Casaleggio! Já governa dois grandes municípios: Roma e Turim (mais 36 outros municípios, 17 Deputados europeus, 91 Deputados e 35 Senadores). Ora é este Partido que, vencendo o “Não”, fica em “pole position” para vencer as eleições antecipadas, se o Presidente Mattarela e Renzi decidirem que o melhor é convocá-las. Até porque 2018 está longe e a Itália está com graves problemas, devendo o próximo executivo estar ancorado numa forte legitimidade. Com a derrota estrondosa de Renzi, este é um cenário muito plausível. Talvez mais do que o que, antes, se apresentava nos USA, com Donald Trump.
Os dados macroeconómicos
A Itália de Renzi exibe fracos índices macroeconómicos, com a dívida pública nos cerca de 133% do PIB (2015), o défice a 2,6% (2015), o crescimento a 0,8% (2015), e o desemprego a 11,7% (2016). O sistema financeiro italiano conhece uma grave crise de tipo estrutural, a precisar de ajuda da União. Do ponto de vista europeu, Renzi tem vindo a manter uma forte tensão com Bruxelas, designadamente sobre a questão do défice, e relações algo encrespadas com Angela Merkel. Do ponto de vista do seu próprio partido, as tensões têm vindo a crescer (por exemplo, com os ex-líderes Massimo D’Alema e Pier Luigi Bersani) de tal modo que uma parte do PD não alinhou com a posição do PD e do Governo.
Renzi, está visto, cometeu um enorme erro político. Procurando reforçar-se internamente, no interior do seu próprio partido, acabou gravemente derrotado no País. Este caso faz-me recordar o de Cameron: para resolver uma crise interna no seu partido, acabou por provocar o BREXIT. Em Itália, Matteo Salvini pula de contente. Mas certamente Beppe Grillo ainda pulará mais. E Renzi sai.
O futuro
A questão que se põe é esta: se esta opção do governo e da maioria foi tão pesadamente recusada, que certeza poderiam ter os italianos de que as futuras decisões da maioria e do governo iriam estar em linha com as suas expectativas? Nenhuma, vista a dimensão do erro e da derrota. Foi também por isso que Renzi deu por finda a sua experiência governativa e deverá, também por isso, solicitar eleições antecipadas, com ele ou sem ele. E é aqui que surge de novo o M5S.
Em primeiro lugar, se ganhar as eleições teremos o primeiro governo de inspiração digital num país europeu de grande dimensão. De facto, a originalidade política italiana não é de agora! Depois, teremos provavelmente um referendo sobre o Euro. E, finalmente, dependendo do resultado, novos e graves problemas para a União, vindos de um dos seus pilares fundamentais. Mas não era a Holanda o país mais progressista da Europa em matéria de imigração até chegar um senhor de extrema-direita chamado Pim Fortuyn, estando o seu partido, agora dirigido por Geert Wilders, à beira de ganhar as eleições previstas para Março, com a tremenda regressão civilizacional que isso representará?
A festa austríaca durou só umas horas. Foi bom não ver a extrema-direita na Presidência da República. Mas a derrota de Renzi pode significar mais do que parece. Ou seja, pode significar a “déblâcle” da esquerda italiana, perdida como anda em facções e em guerras pessoais, mas sobretudo sem uma cartografia cognitiva. Mas esta talvez seja a questão de fundo que se põe a todos os partidos socialistas europeus. Disso falarei no artigo da próxima semana.