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Domingo, Dezembro 22, 2024

O Cazaquistão e o desastre diplomático russo

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

‘Agora não é o momento para a guerra’ foi a mensagem pública concisa e cortante  que o primeiro-ministro Modi deixou no seu encontro bilateral com o Presidente Putin. Permanecerá como a memória mais impressionante da cimeira da “Organização de Cooperação de Xangai” de 2022, em Samarkand, no Usbequistão, realizada no dia 16 de setembro.

A mensagem do Primeiro-Ministro Modi, que forçou o Presidente Putin a reconhecer publicamente a sua frágil posição sobre a invasão russa, contrasta fortemente com a saga mediática de repetidos telefonemas bilaterais entre o Presidente Putin de um lado e o Presidente Macron e o Chanceler Scholz do outro, que deram uma impressão de amadorismo e incapacidade europeias perante um Putin firme e empenhado.

As recentes derrotas da Rússia na sua aventura militar europeia, apesar das suas tácticas implacáveis e do seu forte empenho, estão a ser sentidos como prelúdio de um novo desastre imperial russo. Os conflitos armados recomeçaram tanto nas fronteiras do Azerbaijão – Arménia como do Quirguistão – Tajiquistão;  todos os quatro países anteriormente parte da URSS, e em ambos os conflitos a Rússia parece incapaz de obter quaisquer resultados como mediador da paz.

Em Samarkand, para além da repreensão pública recebida do Primeiro-Ministro Modi, o  Presidente Putin foi forçado a dizer que o Presidente chinês também não estava satisfeito com a situação na Ucrânia.   Isto é notável, pois todas as declarações públicas iniciais e os actos  da  liderança chinesa no momento da invasão – nomeadamente coordenando o seu timing com os Jogos Olímpicos de inverno de Pequim – apontaram para o  apoio das autoridades chinesas à agressão russa.

O colapso da capacidade diplomática russa foi mais óbvio ainda no Cazaquistão.  A intervenção russa no país no início de 2022 foi amplamente vista como um grande sucesso, um sinal de vida da Organização do Tratado de Segurança Colectiva (OTSC) – a primeira vez que as cláusulas de assistência mútua foram  implementadas – e, mais importante, como afirma o título de um relatório Nikkei sobre o assunto, um sinal de que ‘a missão do Cazaquistão deixa consequências permanentes de presença militar’.

No entanto, nada aconteceu como esperado.  Menos de uma semana após a chegada das tropas russas, o Presidente Tokayev anunciou a sua rápida retirada numa comunicação pública. O relatório de imprensa da France 24 (bem como vários outros relatórios de imprensa consultados) não mencionou quaisquer palavras de gratidão do Presidente Tokayev relativas à intervenção russa.

De acordo com uma análise de Aliya Askar – pseudónimo de um investigador cazaque que escreve no Diplomat (Askar, 2022.03.07), relativo à  dívida assumida do Cazaquistão para com a Rússia – “se a ‘dívida’ existiu, Nur-Sultan não a está a pagar”.

Mais do que não pagar dívidas, Nur-Sultan destacou-se em todos os planos na marcação das suas diferenças com Moscovo, incluindo a aplicação de sanções contra a Rússia e até mesmo o fornecimento de armas ao exército ucraniano:

‘Os meios de comunicação pró-governo russos e os seus canais Telegram afirmam que o Cazaquistão chegou ao ponto de fornecer armas à Ucrânia. As alegações baseiam-se num contrato supostamente descoberto ao abrigo do qual a empresa cazaque Technoexport estará a exportar armas e munições da era soviética para a Ucrânia através da Jordânia e do Reino Unido. O Cazaquistão rejeita oficialmente essas alegações, mas quer esteja a enviar ou não armas para a Ucrânia, é óbvio que o Cazaquistão está a tentar afastar-se do seu aliado tóxico russo ( Umarov, T., 2022.09.16).

Análises relevantes dos eventos de janeiro de 2022 no Cazaquistão (como por exemplo, Junisbai, A. 2022.05.20) apoiam  a afirmação  do presidente Tokayev de que se tratou de um golpe de Estado falhado mais do que de um protesto popular espontâneo; no entanto, muitos têm mais dúvidas de  que este golpe poderia ter sido organizado por círculos próximos do ex-Presidente Nazarbayev, como ele também afirma.

As únicas ligações estrangeiras possíveis a este golpe foram publica mas vagamente identificadas por Tokayev como ‘grupos terroristas e criminosos apoiados por estrangeiros’ (Eurasianet, 2022.01.06).

A decapitação dos soldados cazaques aparece como um traço típico de uma ligação jihadista, mas de outra forma, as alegações mais precisas que culpam os jihadistas pela agitação foram as de fontes oficiais russas:

‘“Consideramos estes últimos acontecimentos na nossa nação aliada uma tentativa de inspiração estrangeira de usar a violência e bandos armados organizados e treinados para minar a segurança e a integridade territorial do Estado”, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo em comunicado.

‘Se as autoridades cazaques estão a ser circunspectas na atribuição de responsabilidades pela violência em Almaty , os políticos russos têm sido mais ousados. O senador russo Konstantin Kosachev, presidente da Comissão dos Assuntos Externos, disse que os manifestantes no Cazaquistão incluíam militantes vindos das fileiras de gangues armados que operam no “Médio Oriente, principalmente no Afeganistão”. Ruslan Balbek, deputado da Duma estatal, disse, entretanto, ter detectado o envolvimento do Estado Islâmico (Eurasianet, 2022.01.06).’

A interpretação do golpe pelas autoridades cazaques evoluiu. Alguns dias depois, Madina Ashilova (2022.01.20) declarou:

‘Pensamos agora que os “terroristas” eram na sua maioria bandidos locais, que treinavam metodicamente há muito tempo. Muitos deles aderem ao Islão não tradicional – o salafismo – que tem vindo a florescer no país nos últimos anos. Têm ligações com o Comité de Segurança Nacional, a agência de informações oficial do Cazaquistão. Não sabemos ainda quem organizou todos estes distúrbios e ataques e como e por que razão o fizeram. Parece claro que houve um comportamento criminoso, se não mesmo de traição – de que outra forma explicar a inacção policial quando os saques eclodiram em toda a cidade? Foram mesmo militantes estrangeiros que cortaram a cabeça dos soldados? ‘

Ashilova também disse no mesmo artigo:

‘A Rússia oferece uma proteção fiável contra qualquer manifestação de terrorismo e extremismo no nosso país. São o principal factor que impediu os talibã, o Estado Islâmico, os Mujahideen e outros grupos de penetrarem no país. Na Ásia Central, terroristas e extremistas representam uma ameaça muito maior do que a Rússia, especialmente após os recentes desenvolvimentos no Afeganistão. ‘

A interpretação benevolente de Ashilova sobre a intervenção russa sobre a crise é bastante distinta da demonstrada depois pelas autoridades cazaques, e talvez não fosse mesmo a interpretação destas na altura, ou pelo menos a do Presidente Tokayev.

A maioria dos analistas – como o supracitado Umarov (2022.09.16) – alinham uma vasta gama de razões para o distanciamento cazaque da Rússia; no entanto, sem mostrar uma clara coincidência temporal entre essas razões e esse distanciamento.  Além disso, não conseguem explicar por que razão a ajuda da Rússia à repressão da agitação popular da Bielorrússia levou a resultados tão diferentes da intervenção russa, aparentemente semelhante, no Cazaquistão.

É de salientar que as tropas russas puderam ser destacadas no prazo de um dia após o apelo oficial  do  Presidente Tokayev (Radio Liberty, 2022.01.06), e também é surpreendente que não tenha sido realizado qualquer seguimento à suposta coordenação islamista estrangeira.

Se a sucessão destes passos óbvios por parte das autoridades cazaques para se distanciarem da Rússia não conseguiu impressionar nem as diplomacias europeias nem os Estados Unidos, o mesmo não aconteceu com a China. A primeira viagem ao estrangeiro do Presidente Xi após o início das restrições de viagem relacionadas com a pandemia foi ao Cazaquistão, onde forneceu garantias de segurança tão ostensivamente em falta do lado russo. Foi um prelúdio para a manifestação em Samarcanda do poder chinês e da fraqueza russa.

Não se deve subestimar a possibilidade de a Rússia poder inverter o seu actual rumo para o naufrágio, mas neste momento isso não parece provável. As consequências destas mudanças tectónicas de poder estão a ser sentidas abertamente no Cazaquistão; no entanto, elas também se farão sentir noutras regiões, incluindo a Ásia do Sul.


Este artigo é uma adaptação à língua portuguesa de um artigo publicado em língua inglesa.

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