Os meios de comunicação social designados de massa desempenham, desde há décadas, um papel decisivo junto da sociedade civil, quer pelo seu papel de esclarecimento cívico e político, quer pelo modo como podem constituir-se veículo de representação das suas posições e expectativas. Entre outras razões igualmente plausíveis, deve-se também à importância desse papel o escrutínio crítico da actividade destes meios, no sentido não apenas da renovação da sua valorização nessa qualidade, mas também do reforço da necessidade do desempenho desse papel em condições de equidistância face aos diversos agentes cuja acção reporta e enquadra.
Neste plano, não deixam os últimos dias vividos na República Portuguesa no plano político e, sobretudo, no plano mediático de merecer uma análise simultaneamente estimulante e preocupante: estimulante pelo facto de neles encontramos aspectos que, pelo seu impacto potencial junto da sociedade civil, merecem ser dissecados, escrutinados, interpretados e esclarecidos; preocupante pelo facto de permitirem um diagnóstico pouco lisonjeiro do carácter democrático das nossas instituições de representação política – designadamente os partidos e os agentes que os representam discursivamente – e do contributo que os meios de comunicação oferecem ao reforço desse carácter.
Começando pelo lado das questões estimulantes levantadas pelo actual contexto, e de entre todo o espólio de abordagens passíveis de serem praticadas para caracterizá-lo, vale a pena recordar um dos conceitos mais interessantes desenvolvidos a propósito da actividade dos meios de comunicação e dos efeitos que essa actividade pode ajudar a produzir junto da opinião pública: o de pânico moral. Definido pela primeira vez há mais de cinquenta anos, o pânico moral inclui entre os seus traços de caracterização dois aspectos fundamentais: a um tempo, a ideia de que pode ser desenvolvido através – e em certa medida dependendo – do contributo de intermediários como os meios de comunicação social, dada a abrangência do seu alcance social; a outro tempo, a ideia de que ambiciona a geração de uma representação negativa – a conotação de algo como desviante ou inapropriado perante um determinado conjunto de valores sacralizado como representando o equilíbrio, a estabilidade, entre outras qualidades desejáveis – associado a um determinado grupo ou colectivo. Ora, o eco que um conjunto crescente de conteúdos mediáticos, sejam peças de produção própria, sejam intervenções de convidados/comentadores, tem gerado reveste-se de uma natureza curiosamente coincidente no tom e no diagnóstico, quando não na sugestão de uma acção politicamente terapêutica: a de que a mera possibilidade de um Governo apoiado por acordos políticos negociados à Esquerda constitui uma solução não apenas eleitoralmente ilegítima mas – e é precisamente aqui que entra o conceito de pânico moral – cujas consequências são afirmadas como nada menos que o Apocalipse.
Em que tem esse diagnóstico assentado, do ponto de vista discursivo? Em diversas estratégias convergentes no seu efeito. Entre os conteúdos mediáticos mais frequentemente veiculados (e repetidos) temos, por um lado, a afirmação de que a possibilidade desse acordo produz efeitos ao nível do funcionamento dos mercados financeiros, incluindo os internacionais (“Costa assusta investidores”, Jornal de Negócios, 13/10/2015), ficando por explicar não apenas a capacidade desconhecida existente em partidos políticos numa economia periférica de produzir oscilações numa escala global.
Por outro lado, o verdadeiro terramoto que tal possibilidade levanta inspira preocupações de natureza política ao mais alto nível político europeu, convidando a tomadas de posição por parte de altos dignatários da União Europeia mas também, pasme-se, da parte de representantes políticos eleitos de outros países cuja legitimidade para interferências em países terceiros sempre foram recusadas como ingerências inaceitáveis excepto neste caso (“Direita europeia contra Governo do PS com apoio à esquerda”, RTP, 21/10/2015).
Assiste-se ainda a exercícios de pura ginástica discursiva, temperada com um pouco de hipocrisia e de curioso esquecimento selectivo, como os praticados pelo líder do partido eleitoralmente mais fraco da coligação, sem que qualquer referência seja feita pelos mesmos meios que os veiculam às razões pelas quais não deveriam ser afirmados sequer (“Não há o direito de lesar a credibilidade externa de Portugal”, Paulo Portas, entrevista à TVI, 19/10/2015; “”Irrevogável” custou… 2,3 mil milhões”, Diário Económico, 26/12/2013).
Acresce a este cenário o conjunto de escolhas manifestamente comprometidas com apenas uma visão, uma perspectiva, quanto a potenciais impactos da existência de uma solução governativa apoiada em acordos à Esquerda: em dias sucessivos, multiplicaram-se não apenas as entrevistas com figuras de destaque dos partidos a quem essa solução privará do exercício de poder governativo – Maria Luis Albuquerque, Assunção Cristas, Paulo Portas – mas também os espaços de comentário político onde, à revelia de tudo o que existe no enquadramento jurídico da acção dos meios de comunicação social em Portugal, os pontos de vista, as posições, as profecias se limitaram, na esmagadora maioria dos casos, às posições dos partidos conotados com ideologias mais à Direita.
Recuperando o conceito de pânico moral, todas as etapas que este compreende foram cumpridas escrupulosamente, sem excepção, através e com o beneplácito dos meios de comunicação social: a representação da possibilidade de acontecimento como um problema de consequências gravíssimas, a fixação das interpretações plausíveis (e aceites como prováveis) desse problema que devem orientar a opinião pública, o recurso à hipérbole no campo já não da análise mas da futurologia, o recurso a estereótipos quanto aos responsáveis pela emergência do problema, a mobilização da opinião de especialistas que retirem o problema do campo da possibilidade e o projectem no campo da inevitabilidade, a identificação dos valores ameaçados pela concretização desse problema, a demonização prévia das propostas e dos respectivos proponentes, e a apresentação por contraste daqueles a quem a confiança da sociedade civil deve ser atribuída como paladinos da restauração da ordem, dos valores, do equilíbrio.
Ora, se do ponto de vista analítico a acção dos meios de comunicação social é fascinante, devendo todo este contexto ser objecto da mais sistemática análise enquanto paradigma do fracasso absoluto do cumprimento dos seus desígnios, já do ponto de vista puramente político e cívico a facilidade com que tal aparelho mediático parece ter sido mobilizado em conjunto deve inspirar a todos uma reflexão profunda: como é possível tal articulação de forças, consciente ou involuntária, de forma a produzir este eco, a disseminar esta sensação generalizada de pânico perante uma possibilidade colocada pelo normal desenrolar do processo democrático, no qual o resultado mais saudável é precisamente a negociação entre os representantes eleitos, de forma a garantir a efectiva representação dos interesses dos eleitores? Como foi possível que, como afirmava Goya, o sono colectivo cívico e regulatório tenha permitido a acção inescrutinada deste kraken político-mediático, privando a sociedade civil não apenas dessa instância de representação e arbitragem absolutamente decisiva que os meios de comunicação social constituem mas, mais que isso, a sua colocação ao serviço de uma avaliação ilegítima do que pode ser considerado aceitável enquanto solução governativa emergente de um normal processo de negociação de interesses? Que mensagem traduz este cenário quanto ao carácter democrático do nosso regime, e ao papel do seu reforço desempenhado pelos nossos media?
Nada parece retratar de forma mais perfeita a natureza dos nossos dias do que as palavras escolhidas por Charles Dickens para iniciar a sua obra “A tale of two cities”[1]. E ainda que, enquanto analista, estes dias sejam de entusiasmo científico pela quantidade de informação relevante que deles resulta, todos os democratas devem temer que o entusiasmo do analista seja conseguido à custa do pânico do cidadão”
[1] “It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity, it was the season of Light, it was the season of Darkness, it was the spring of hope, it was the winter of despair, we had everything before us, we had nothing before us, we were all going direct to Heaven, we were all going direct the other way […]” (Capítulo 1).