O recente discurso de Trump na ONU, se outro mérito não teve, pôs a nu uma insanável divergência de fundo entre os “globalistas” e os “soberanistas”. É neste quadro que Guterres “deslizou”… A desregulação lançada por Reagan e Thatcher culminou na financeirização da economia mundial levando ao que se tem chamado “globalização”, sobretudo, depois de, em paralelo, o processo de implosão da URSS ter atirado todo o universo comunista para a economia de mercado. Rapidamente, o discurso político dominante, servido por especialistas variados e outros teóricos encartados, passou a explicar-nos que os Estados pertenciam ao passado, que o “mercado” (ou seja, a financeirização globalizada) regulava tudo e que às autoridades “nacionais” apenas restava assegurar boas práticas de “governança”, codificadas, aliás, em documentos mais ou menos apócrifos mas com valor de bíblia.
Curiosamente, a esquerda americana e, sobretudo, a europeia (com a notável excepção do que resta de PCs) embarcaram alegremente nesta aventura de glorificação do mundo criado pela desregulação de Reagan e Thatcher, mesmo se continuaram a denegrir aquelas duas personagens. Esquizofrenia total.
Para o perceber, é preciso identificar o maquiavelismo da financeirização globalista para conseguir este desiderato de ter “comido a esquerda ao pequeno-almoço” e a ter encerrado num ciclo esquizofrénico que lhe foi fatal. O dispositivo utilizado para concretizar esta estratégia globalista de destruição da esquerda euro-americana foi (é…) o “politicamente correcto” das chamadas “causas societais e fracturantes” com suas permanentes “defesas de minorias”.
Quando aceitaram trocar o “social” pelo “societal” (troca que ficou bem ilustrada na última campanha presidencial americana com Trump a falar de haver pão e manteiga na mesa e Hillary a debater o uso das casas de banho pelos transsexuais…), as esquerdas suicidaram-se, perderam o eleitorado popular (que era a sua razão de ser) e passaram a jogar servilmente no tabuleiro estratégico da financeirização. E fizeram-no com tanto mais empenho e convicção quanto era (é…) escassa ou mesmo inexistente a consciência do que faziam (estão a fazer).
Neste processo, a esquerda perdeu o povo e, em consequência, o eleitorado popular ficou desamparado e tornado um mercado de votos disponível para quem o soubesse conquistar. Isto conduziu ao aparecimento de uma oferta de novos produtos políticos que estão a conquistar o voto popular (e o poder), da Polónia aos EUA, da Itália à Suécia, do Brexit à Hungria, etc… E não vale a pena clamar que Salvini é um fascista, ele é um político “made by PCI”.
Nesta assembleia da ONU, estas contradições manifestaram-se em dois discursos fundamentais que veiculam interesses, narrativas e, sobretudo, lógicas radicalmente divergentes: o de Trump e o de Guterres.
Trump diz tudo sobre isso ao afirmar “a América é governada pelos americanos, rejeitamos a ideia de globalismo e abraçamos a doutrina do patriotismo”. Ou seja, “make América… etc.”.
Nos antípodas desta posição, Guterres assume-se defensor (de esquerda, claro) do globalismo e da financeirização ao dizer que a grande função dos líderes políticos é a de “guardiões do bem comum” quando “a ordem mundial é cada vez mais caótica”. Guterres, sublinhe-se, tem todo o direito de fazer este discurso (com as suas habituais doçura e subtileza) mas o que ele traça é uma estratégia defensiva do status-quo, é um objectivo de contenção da derrocada do mundo da financeirização globalista.
Esta estratégia defensiva organizar-se-ia à volta de um não-definido “bem comum”. E não é por acaso que Guterres não o define. De facto, como incluir nesse “bem comum” os assalariados do Ocidente que, nas últimas décadas, foram espoliados do seu poder de aquisição e mesmo, muitos, do seu trabalho? Sobre isto (que é o essencial), Guterres disse nada.
Para Trump, o dirigente político abraça a doutrina do patriotismo. Para Guterres, abraça a ideia do “bem comum” do globalismo. São duas lógicas não só divergentes como condenadas a chocar de frente.
Subtilmente, Guterres introduz na sua alocução esta afirmação (não fundamentada) que corporiza a razão da perda do eleitorado popular pela esquerda e a desarma e incapacita para a luta pela recuperação desse eleitorado, ao fixar aos líderes políticos a função primordial de “guardar” o “bem comum” globalista.
Nos desejos do eleitorado (que o levam a votar), o dirigente político é eleito para lutar pelo bem da sua comunidade, pelo bem de quem o elege… Ou seja, como diria Trump, “make America great again” e tragam-nos de volta os nossos empregos e salários perdidos.
Na sua subtileza, Guterres desliza do bem comum da comunidade nacional para o bem comum global, o da financeirização e do globalismo (pois não há outro). Ora há pouco ou nada de comum entre estes dois “bens comuns”.
A lógica de Trump (como a de Putine ou Xi Jinping) é moderna e westfaliana (do Tratado de Westfália, de 1648) e é a que tem garantido nestes últimos 4 séculos o concerto mundial. A lógica de Guterres é pós-moderna, enterra Westfália e, se não é claro a que interesses responde, são claras na sua narrativa ilusões várias. Estas duas lógicas são incompatíveis, a sua “convivência” é um conflito só resolúvel com a derrota de uma delas.
A guerra dos “mercados” contra os Estados soberanos vai pois continuar ainda. As duas Guerras Mundiais foram tentativas (falhadas) de destruir o sistema de Estados soberanos saído de Westfália. Virá aí mais uma tentativa? Acresce que, para complexizar (bastante mais) a coisa, se desenvolve, em paralelo a esta “guerra” mas no tabuleiro da geopolítica, uma outra menos visível mas mais determinante.
Se, no fim do século XX, a vitória da potência marítima sobre a potência continentalista na Guerra Fria conduziu alguns teoricistas mais excitados a prometeram “o fim da história”, a verdade é que já estamos hoje a assistir ao refazer do núcleo continentalista euro-asiático que prepara o seu regresso à disputa pela hegemonia mundial… Um novo grande jogo está a iniciar-se!
O eixo Berlim-Moscovo-Pequim (um eixo nada pacífico mas definido por uma forte convergência de interesses que se expressa no seu “anti-americanismo”…) está a reconstruir a potência continental e a preparar o afrontamento pela conquista da hegemonia global. E o seu profeta mais visível (para quem observa do Ocidente) é Alexandre Duguine, com a sua bíblia da “quarta teoria política e pós-liberalismo”. Convém lê-lo e conhecer as suas propostas de governo continentalista, tão radicais quanto estranhas a qualquer tradição ocidental.
Como tudo isto vai jogar é o filme dos próximos anos. Se, neste filme, pode ainda haver algum papel para a esquerda (depois de ter perdido o povo e insistir em manter-se cega e surda) é algo ainda em aberto: a esquerda está em morte cerebral (como o deslize de Guterres nesta assembleia da ONU veio de novo demonstrar) mas, se assumir os seus fundacionais e as suas razões de existir, poderá talvez ainda ressuscitar.
Exclusivo Tornado / IntelNomics
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