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Terça-feira, Julho 16, 2024

O drama sírio em crescendo

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Em tudo isto, a Europa não existe, ou só existe da pior maneira. O paralelo com o Império Romano na sua fase final que pensou poder conter as invasões bárbaras sem recurso à defesa, mas comprando a boa vontade de tribos fronteiriças, é de tal forma evidente, que é difícil de entender como ninguém se parece dar conta dele.
Tudo começou com uma revolta popular contra um dos mais – senão o mais – autocrático e corrupto regime atingido pela ‘Primavera Árabe’.

  1. Como começou o drama

Perante a indiferença do mundo ocidental o regime libertou os jihadistas mais notórios enquanto procedeu à prisão, tortura e assassínio de dezenas de milhares de cidadãos que se tinham manifestado contra o regime, decapitando de forma duradoura qualquer esperança de transição democrática.

A secção da Al-Qaeda no Iraque – que há muito tinha a sua retaguarda na Síria – passa à oposição, primeiro através de um destacamento autónomo denominado de Al Nusra e depois, já em confrontação com Al-Zawahiri, o contestado herdeiro da liderança de Bin Laden, de forma autónoma.

A Turquia torna-se o país líder da oposição e contribui decisivamente para a transformar num pleno movimento jihadista onde as minorias religiosas não têm lugar, enquanto o movimento curdo próximo do PKK turco aproveitou a oportunidade para estabelecer o seu domínio em zonas a Leste e fronteiriças com a Turquia. Enquanto a Europa nada faz, a administração americana de Obama apoia acriticamente a oposição jihadista, contribuindo negativamente para o desenrolar dos acontecimentos.

Em 2014, a secção iraquiana da Al-Qaeda, o ISIS, cinde de forma permanente com a organização, ganha largas partes do território iraquiano e sírio cometendo barbaridades ainda maiores do que os seus rivais e estende a Jihad a territórios ocidentais através de atentados terroristas.

Aproveitando a oportunidade criada pelo ISIS, os Guardas Revolucionários Islâmicos comandados pela teocracia conseguem obter o apoio tácito e mesmo operacional do Ocidente para estenderem primeiro a sua presença no Iraque e na Síria, e depois para a entrada na guerra de fortes contingentes russos, em nome da luta contra o ISIS, da preservação do regime aliado de Al-Assad ou da Jihad iraniana, de acordo com o interlocutor.

  1. O esmagamento da rebelião

A aliança dos corpos expedicionários de guardas islâmicos e forças regulares e irregulares russas com o regime de Assad inverte o curso da guerra, reconquistando a maior parte do território perdido para o ISIS ou para outras formações jihadistas de orientação pró-turca à custa de uma implacável guerra que não respeita civis e que faz dos hospitais alvos privilegiados.

Perante a indiferença ocidental, centenas de milhares de civis são mortos, nomeadamente em bombardeamentos que não têm a preocupação de poupar vidas civis, milhões fogem como refugiados em especial para a Turquia, muitos acabando na Europa, o Iraque cai quase inteiramente nas mãos das sucursais da teocracia que impõem a sua lógica mafiosa de terror e saque, enquanto se assiste na Síria à maior limpeza étnica do século que tem como principal alvo a maioria árabe de orientação sunita, o que é também a primeira vez no século em que ela não se dirige a uma minoria.

No massacre generalizado é sintomática a capacidade do aparelho ideológico e comunicacional ocidental para esconder a realidade.

O Ocidente que supostamente combate a chamada ‘islamofobia’ pela qual o povo tende a ver todos os muçulmanos como cúmplices da Jihad, ignorou ostensivamente os crimes massivos cometidos contra a população síria por esta ser supostamente cúmplice dos crimes das facções jihadistas opostas ao regime de Assad.

Enquanto o Ocidente tem uma posição ferozmente anti Israel por este país supostamente não respeitar os direitos dos palestinianos, ignorou soberanamente a morte pelo regime de cerca de 4000 palestinianos. Eram árabes sunitas e nem sequer eram sírios, portanto caça livre para a aliança pró-Assad, mortes inúteis para o Ocidente poder acusar Israel, donde silêncio e indiferença.

Enquanto a limpeza étnica decorria, o Ocidente conseguiu camuflá-la como ‘crise de refugiados’ que seria totalmente independente das suas causas, mantendo apesar de tudo uma presença militar, especialmente americana, mas também francesa e britânica que, já depois do abandono da espúria aliança com os grupos islamistas controlados pela Turquia, acompanhou as forças curdas nos combates contra o ISIS.

A Turquia embrenhou-se numa complexa lógica de negociação pela qual acabou por permitir a limpeza étnica síria a troco da permissão irano-russa para proceder de forma equivalente nos territórios curdos e mantendo uma pequena zona de influência em equilíbrio instável, enquanto cobrava somas avultadas às instituições europeias para parar o afluxo de refugiados sírios.

Apesar das estridentes declarações francesas de uma ‘morte cerebral da OTAN’, a França e os seus parceiros europeus continuaram a financiar a Turquia para esta não enviar os refugiados sírios para território europeu acompanhando na prática a passividade americana pela ocupação turca do território sírio antes controlado pelas forças curdas.

  1. A expansão da Jihad

Eliminados os seus rivais, os Guardas Revolucionários Islâmicos tentaram por sua vez ver-se livres da presença americana no Iraque – que inevitavelmente causará a sua saída da Síria – numa manobra que por agora saiu frustrada, por ter sido demasiado óbvia, mas que não está colocada de lado perante a quase cega unanimidade americana em deixar o teatro de guerra sem nada fazer para apoiar as populações que do Líbano ao Iraque se revoltam contra a ocupação jihadista iraniana.

O Presidente Trump, de forma mais clara mas em consonância com o que já diziam os seus predecessores, afirma que apenas estará disponível para continuar no Médio Oriente se tanto a Europa como o Mundo Árabe se empenharem quer financeira quer militarmente na segurança da região, o que tem sentido.

A Turquia continuou a sua política de equilíbrio instável com a aliança irano-russa em território sírio ao mesmo tempo que resolveu imitar o modelo iraniano de ‘guardas revolucionários islâmicos’ transnacionais criando um corpo expedicionário com jihadistas mercenários sírios que conta já com 5000 homens e que enviou para a Líbia para defender as milícias islamistas acossadas nos seus bastiões de Trípoli e Misrata.

Desde Dezembro, de acordo com a principal fonte de informação humanitária na Síria, regista-se já a fuga de 670.000 civis das suas casas no Norte da Síria, enquanto pela primeira vez a Turquia ameaça não assistir passivamente às operações de limpeza étnica da aliança irano-russa.

Em tudo isto, a Europa não existe, ou só existe da pior maneira, pagando aos jihadistas de Trípoli para estes evitarem a fuga de refugiados para a Europa (à imagem do que fazia já com a Turquia e que tem sido a sua política geral) promovendo trapalhadas diplomáticas de pseudo-tréguas e ignorando as populações em revolta contra os jihadismo, não tendo qualquer estratégia de cooperação com o mundo árabe para fazer face aos imperialismos jihadistas.

O paralelo com o Império Romano na sua fase final que pensou poder conter as invasões bárbaras sem recurso à defesa, mas comprando a boa vontade de tribos fronteiriças, é de tal forma evidente, que é difícil de entender como ninguém se parece dar conta dele.


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