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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

O efeito afrodisíaco do poder

João Vasconcelos Costa
João Vasconcelos Costa
Investigador e professor universitário (Virologia Molecular), depois dirigente de um instituto de investigação, ensino e cooperação, hoje reformado.

Diz-se que o poder é afrodisíaco. Certamente para os outros, que se deixam seduzir. Mas muitas vezes também para o próprio, numa masturbação do ego. O poder deixa de ser um meio para cumprimento de uma missão para ser um exercício egocêntrico de domínio pessoal.Vem isto a propósito, como tomarei adiante por exemplo, da recusa dos reitores à aplicação do PREVPAP, o programa de resolução da situação dos precários na administração pública. E também do que me disse um amigo há bem pouco tempo: “não é só um grande ditador que é perigoso; são também muitos pequenos ditadores”.

Assim, não vou falar de políticos de topo, como pareceria, mas sim dos pequenos, da tribo dos dirigentes. Há-os bem intencionados, com espírito de serviço público, mas muitos são tiranetes que só querem os lugares pelo gozo de poder que lhes propiciam.

Como em tudo, e sem querer cair em simplismos, é o sistema sócio-económico que cria o terreno cultural propício ao poder vicioso.A economia tomou conta da política, exerce-a cada vez mais diretamente (agora já são os milionários que presidem aos EUA, já não os seus anteriores mandatários), ao mesmo tempo que exige a retirada do Estado da esfera económica e social. Entretanto, instila no serviço público uma lógica e cultura de tipo empresarial, à qual se sujeitam alegremente muitos quadros formados pelas escolas do aparelho. É um nó górdio que só se desfará com uma espada revolucionária. Entretanto, muitos dirigentes tiram dessa lógica empresarial, fortemente hierárquica, a razão justificativa da sua ação autoritária.

Um trabalho com espírito de missão, à luz do que se considera a ética republicana, pede compromissos, assenta nas capacidades equilibradas com outras esferas da vida, pede viabilidade pessoal e gera responsabilidades nas relações sociais. Pelo contrário, o trabalho de direção vicioso, quase aditivo, é um objetivo em si próprio, com desequilíbrios sem sentido da necessidade de conciliação, funciona como factor de autoestima e gera isolamento, autojustificação e impermeabilidade às críticas. No primeiro caso, obtém-se orgulho e satisfação. No segundo caso, êxito e poder.

E quantos desses casos de exercício vicioso do poder não correspondem a desvios ou perturbações da personalidade, coisa atualmente a merecer muita atenção. Podem ser narcísicos, até narcísicos perversos, psicopatas que podem causar efeitos devastadores nos que os rodeiam e, por extensão, nas instituições que dirigem. São egocentrados ao extremo, autoritários, amorais, ambiciosos, convencidos da sua inimputabilidade. São mestres em violar a lei e a moral com enorme capacidade de transgressão e não se responsabilizam por nada. E é ciclo vicioso, porque essa satisfação dada pelo poder alimenta cada vez maior apetite pelo poder. O leitor nunca teve um chefe assim?

Nada disto devia acontecer – deixem-me parecer ingénuo – porque vai contra os deveres dos dirigentes e seria sancionado. Alguém já viu ser sancionado o dirigente que se afaste, por vezes clamorosamente, dos deveres legais de “legalidade, justiça e imparcialidade, competência, responsabilidade, proporcionalidade, transparência e boa fé”, mesmo quando isso lesa notoriamente a atividade do serviço ou instituto?

Logo de início, não há minimamente a ponderação da personalidade e dos valores sociais e éticos dos candidatos a concursos para cargos dirigentes. Valoriza-se, como hoje em quase tudo, os dados curriculares “objetivos”, como se as pessoas fossem autómatos. É a época dos rankings, das grelhas de avaliação, das escalas, das bibliometrias, em que já não se exige qualquer avaliação qualitativa.

Na sabedoria da mais velha tradição da democracia representativa, o equilíbrio da vida pública assenta na separação de poderes e na existência de pesos e contrapesos entre eles. Na administração, cada vez mais burocratizada e amesquinhada por interesses partidários, grupais ou pessoais, nem os cidadãos nem os próprios funcionários podem exercer um controlo eficaz.

E chegamos ao caso exemplar das universidades (e institutos de investigação, caso semelhante), a propósito da recusa dos reitores em aplicar o PREPAV, com aparente aceitação por parte do ministro.

Lembre-se que o PREPAV é o programa de regularização dos vínculos precários na administração pública, criado pela lei do orçamento de 2017, e com mecanismos para avaliar se as funções exercidas pelos trabalhadores precários correspondem realmente a necessidades permanentes. Isto inclui a criação de comissões bipartidas, as CAB, para cada setor, incluindo a ciência e ensino superior, o que indica que o ensino superior está abrangido pelo PREVPAP, ao contrário da opinião dos reitores. Juntamente com o ensino de outros graus e a saúde, formam a grande maioria dos casos de precariedade.

É certo que a carreira docente universitária, refletindo as suas exigências particulares de rigor e qualidade, impõe períodos probatórios de qualidade e vocacionais, em situação de contrato. Essa exceção ao PREVPAP está prevista legalmente. No entanto, a grande maioria dos 5399 requerimentos, dos quais só foram aprovados 37, refere-se não a esses casos, de professor auxiliar ou de professores sem antiguidade de cinco anos para nomeação definitiva, mas sim a situações de contrato a termo abusivas à luz do estatuto. Situação esta criada pelas próprias universidades e pelos reitores e depois agravada com a total liberalidade das universidades-fundações.

É da mais estabelecida tradição universitária o equilíbrio de poderes entre a legitimidade central, estatal, personificada pelo reitor ou pelos diretores de faculdades, e a competência de órgãos representativos da comunidade académica docente (e até discente, em minoria), como sejam o antigo senado das universidades e os conselhos científicos das faculdades. Mesmo quando se dá o exemplo das universidades anglossaxónicas, mais centralizadas, esquece-se que, por exemplo, as decisões mais importantes na U. Oxford competem a uma assembleia eleita, com cerca de 2000 membros.

O regime jurídico das instituições de ensino superior, RJIES, criado pelo ministro Mariano Gago, tendo como Secretário de Estado o atual ministro, veio desequilibrar substancialmente essa longa experiência. Positivamente, criou conselhos gerais com personalidades externas, com o que sempre concordei. Mas logo discordei em vários artigos na minha página da extinção do senado e da diminuição das competências dos conselhos científicos, a par de um grande reforço das competências dos reitores e diretores.

Quem diz competências diz autoridade. Infelizmente, quem diz autoridade diz muitas vezes autoritarismo. E quem conhece bem a universidade sabe que nunca, até ao RJIES e por aí fora, as universidades e escolas tiveram tantos pequenos ditadores.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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