Publicado em 1511, e traduzido para português como o ‘O elogio da loucura’, seguindo a tradução inglesa, o livro de Erasmo, é tido como um dos mais importantes no nascimento do pensamento moderno.
Tendo em conta o título greco-latino dado pelo autor ao original, ‘Moriae encomium sive stultitiae laus’, e as mais correntes expressões num português erudito (e apesar da sua profunda ironia, a obra de Erasmo é obviamente erudita) penso que ‘O encómio da estultícia’ seria por um lado uma tradução mais apropriada e por outro uma expressão mais adaptada à compreensão do nosso quotidiano.
E a estultícia, tal como nos tempos de Erasmo, é multiforme, mas creio que ela é particularmente aguda, e tem um especial potencial destrutivo dos pilares em que assenta a nossa vida, no domínio nuclear.
Fukushima, Chernobyl ou Three Mile Islands… Nada significam?
De passagem por França, vi casualmente nos écrans de televisão um anúncio da EDF, empresa de electricidade do Estado francês, que se vangloriava de fornecer uma electricidade 97% livre de carbono.
Por outras palavras, a empresa pública através da qual se encheu a França de centrais nucleares, responsáveis por mais de 90% da electricidade fornecida, vangloria-se do facto, publicita-o na televisão, lembra que os cidadãos franceses estão mais perto do que outros de ver Fukushima, Chernobyl ou Three Mile Islands dentro de portas tudo isso escondido com o pretexto do carbono, como se o nuclear pudesse ser visto como uma opção ambiental
Numa dimensão mais estulta ainda, pudemos todos assistir à chanceler alemã em campanha eleitoral a prometer – e por duas vezes para termos a certeza de que não se tratava de deslize de linguagem, de palavras soltas ou fora do contexto – fazer um acordo nuclear com a Coreia do Norte na senda do que ela teria conseguido que fosse feito com o Irão.
O mais absurdo da promessa não é o facto de o acordo com o Irão ser obra quase exclusiva da administração Obama e do regime iraniano e pouco ter a ver com ela; não é o facto de ela inverter a ordem dos factores (o acordo com o Irão é a extensão dos que foram feitos por diversas administrações americanas com a Coreia do Norte com os resultados conhecidos); não é tão pouco que os programas nucleares desses dois países são impossíveis de segmentar, é tão só que ela não entende, e tão pouco parece entender a opinião pública que a ouve com indiferença, quão próximo de um holocausto nuclear o seu pensamento nos coloca.
O que foi feito do acto de pensar?
Em tudo isto há naturalmente o poder das modernas máquinas de propaganda que conseguem transformar absurdos em mensagem consensual; há o pensamento ‘fast food’ ou pavloviano em que ninguém perde alguns segundos a reflectir e usar de algum discernimento mas se limita a reagir instintivamente e da forma como foi programado, mas há acima de tudo uma sociedade que cada vez mais enaltece a falta de inteligência, de pensamento e de reflexão.
Sem nos darmos por isso, estamos a pôr em prática a distopia orwelliana. E não, não é por efeito de nenhuma conspiração universal, é apenas pelo efeito dos mecanismos de comunicação e de pensamento que a nossa sociedade está a produzir.
Como é possível que os nossos líderes políticos olhem para a proliferação de bombas termonucleares para as mãos de regimes reconhecidamente imunes a qualquer respeito pela humanidade, como se se tratasse de um qualquer acordo político corriqueiro
Há no simplismo populista com que o tema tem sido tratado por dirigentes como o Presidente dos EUA, muito de errado e perigoso, mas há pelo menos o bom senso de entender que não é possível continuar a política de avestruz que tem sido seguida até hoje, exactamente quando o risco da catástrofe nuclear se acelera desmesuradamente.
Que futuro para as próximas gerações?
A lógica de pensamento e comunicação tornou-se tão caricatural que de pouco ou nada adianta uma reflexão pausada sobre o que temos pela frente ou a construção de cenários credíveis e realistas, porque uns e outros são logo esmagados pelo rolo compressor da máquina que enaltece a asneira.
Numa sociedade em que é possível lançar campanhas publicitárias da energia nuclear com argumentos pseudo-ambientais e fazer da proliferação nuclear um pequeno preço a pagar para não indispor ditadores, há que temer o pior.
Precisa-se de estratégias que consigam minimizar riscos e custos, não no horizonte de um acto eleitoral, não ao ritmo da criação de dinheiro, mas antes no de uma humanidade que não pretende chegar amanhã a nenhum ‘fim da história’ em versão corânica ou de niilismo pós-marxista-leninista mas antes a um futuro próspero, feliz e pacífico para as gerações que nos seguem.