Temos um problema muito sério em Espanha, visto que o referendo na Catalunha viola a Constituição – Artigo 2: “A constituição fundamenta-se na indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis”. E esta violação já foi declarada pelo Tribunal Constitucional. Felipe González diz que esta é a mais grave crise que Espanha vive desde há 40 anos. O processo de injunção das forças de segurança para travar o processo e levantar minuciosos autos está em curso. A independência é reivindicada por uma parte importante dos catalães e das suas instituições. Mas o referendo é ilegal! No mínimo, estão duas legalidades em confronto!
Este processo faz pensar no que aconteceu na Escócia em 2014, tendo a maioria (cerca de 55%) rejeitado a independência, num referendo. Mas houve referendo, fruto de negociações entre Londres e Edimburgo. E não há razões para pensar que Londres seja menos centralista do que Madrid e de que a Escócia não tenha raízes históricas que possam fundamentar uma independência.
Fez, pois, bem Londres em negociar, pois, assim, pôde, no terreno da democracia, derrotar o independentismo. A actual Primeira-Ministra Nicola Sturgeon deve ter tomado em boa consideração o que aconteceu no referendo sobre a independência, por ocasião de um Brexit que o actual Mayor de Londres, Sadiq Khan, segundo o “Independent”, já admite vir a ser submetido a novo referendo (“Sadiq Khan suggests Labour may back second referendum on Brexit”).
Teria razão Pablo Iglesias?
Há muito que se sabia desta tendência na Catalunha e, por isso, poderiam ter sido desenvolvidas consistentes negociações sobre o assunto, com vista a evitar o pior. Lembro-me que um dos principais entraves a um acordo de Pedro Sánchez e do PSOE com PODEMOS foi precisamente a posição deste a favor do referendo. Teria Pablo Iglesias razão, defendendo um processo equivalente ao que decorreu no Reino Unido?
“España es muy fuerte!”
Mariano Rajoy agiu como se tratasse de uma simples infracção legal, de uma ilegalidade, ainda que tocasse o nervo central da Constituição espanhola. Ouvi-o dizer com firmeza e dentes cerrados: “España es muy fuerte!”. E o tom e as palavras não me deixaram quaisquer dúvidas da linha de firmeza que iria seguir.
Talvez estivesse a pensar nos mortos que o independentismo basco provocou ao longo de décadas até sair finalmente da agenda política. Certo, mas este é um processo de novo tipo e com uma consistência política mais robusta e ainda mais perigosa para a unidade de Espanha. Dir-se-ia, em linguagem popular: “se a moda pega…”, o que se seguirá? Por exemplo, na Galiza ou no País Basco!
Felipe González: parar para pensar e, depois, falar!
Hoje mesmo, dia 26.09.17, em que escrevo, numa conferência, Felipe González, referindo-se a este processo disse que não se importaria de alterar quer o Estatuto quer a Constituição, mas disse também que não respeitar a lei não é democrático e que o conflito entre duas legalidades pode fazer ressuscitar o fantasma das duas Espanhas, de franquista memória. O seu apelo a que parem para pensar, sendo que, depois, “parlarem”, é de enorme sensatez e seria bom que fosse ouvido.
A força não é solução!
A força nunca foi boa solução política para nada e o processo foi seguramente mal conduzido pelo partido popular. Sabemos que estes processos secessionistas tradicionalmente sempre acabaram em conflito armado interno. E Espanha já o conheceu, de forma bem dramática. Os tempos são outros, sem dúvida, mas o perigo de emergência de uma Espanha mais intolerante é real.
Não vejo como é que o problema se possa resolver sem uma solução política. Que está a ficar cada vez mais difícil, vista a forte injunção coerciva de Madrid na Catalunha, gerando provavelmente um sentimento de união mais forte e alargado do que o que antes existia, desencadeando a lógica do cerrar fileiras perante o inimigo externo!
O problema catalão e a imprensa internacional
Fiz uma pequena viagem pelas primeiras páginas (em suporte digital) de alguns dos mais importantes jornais mundiais, New York Times, Le Monde, Corriere della Sera, La Repubblica, Frankfurter Allgemeine, The Guardian, e, curiosamente, o caso catalão, a 5 dias do referendo, não ocupa a agenda destes jornais. E não deixa de ser estranho, vista a gravidade da situação e os perigos que Espanha enfrenta.
Vi também o “Público” e o Diário de Notícias”. No primeiro, apenas um artigo do eurodeputado Paulo Rangel; no segundo, dois artigos e um de opinião, de Nuno Garoupa. Mas na grande imprensa mundial não se encontram, de facto, artigos sobre o assunto. O que não deixa de ser inquietante!
As regiões europeias e a União!
A questão é grave e, quanto a mim, ela também traduz a falta de uma mundividência fortemente hegemónica (no sentido ético-político e cultural) capaz de funcionar como colante da sociedade espanhola, promovendo a coesão política nacional ao mesmo tempo que reforçasse as componentes identitárias das várias regiões ou nacionalidades espanholas.
Na verdade, a questão da hegemonia, no sentido gramsciano, faz cada vez mais falta no pensamento político contemporâneo. Mas traduz também alguma insuficiência do modelo político-constitucional espanhol. Depois, talvez também falte uma cultura que possa promover uma cidadania europeia robusta assente naquilo que Habermas designou por “patriotismo constitucional”, perfeitamente compatível com as várias identidades nacionais ou regionais.
Em tempos, há precisamente vinte e cinco anos, num ensaio intitulado “Memorial para uma Democracia Europeia” (Finisterra, 10/11, 1992, 91-124), inspirado na visão do então Presidente do SPD, Bjoern Engholm, abordei este assunto, enfatizando a ideia de que seria preciso compensar a perda de soberania dos Estados-Nação na Europa com o reforço político das grandes regiões europeias, tendo como base a ideia de que um Senado das Regiões poderia resolver muitos dos problemas autonomistas já então em curso.
Escrevi então: “Isto para não falar da nossa vizinha Espanha onde, por exemplo, o potenciamento da geografia regional europeia em detrimento da geografia nacional poderia ser a via resolutiva das aspirações autonomistas, por exemplo, do País Basco ou da Catalunha”. Uma identidade política mais forte (no plano interno e no plano da União) poderia atenuar as tendências centrífugas ou autonomistas. O que é exactamente o contrário do que Paulo Rangel parece defender no seu artigo do “Público” de hoje.
O projecto europeu tem, pois, aqui também as suas responsabilidades. Mas, mesmo assim, num espaço político como o da União Europeia, sem fronteiras e com uma moeda única, as aspirações da Catalunha perdem densidade porque de algum modo representam um processo que evolui em sentido contrário ao da integração política europeia, uma vez que o nacionalismo não é amigo do processo de integração federal a que, no meu entendimento, terá necessariamente de levar a União.
E mais densidade perderiam, ainda, se esta região de Espanha tivesse uma presença significativa nesse Senado europeu que hoje tantos já voltam a defender. De resto, os Senados existem para isto mesmo: integrar, representando ao mais alto nível político identidades colectivas ou territoriais. A integração política ao mais alto nível das grandes regiões europeias ajudaria, no meu entendimento, a evitar estas tendências centrífugas, hoje mais animadas como reacção ao processo de globalização mundial.
“No me gusta hacer política amparándonos bajo las togas”!
Não quero pôr em causa a visão ideológica de Rajoy e do PP, talvez demasiadamente ancorada numa visão autoritária, nacionalista e tradicionalista da política, como também não o faço relativamente ao PSOE, que foi incapaz de promover com sucesso uma solução política da questão, por se ter colado excessivamente à posição de Rajoy e do PP.
Mas não deixa de ser curioso que neste processo talvez o PODEMOS tivesse razão ao aceitar a proposta de um referendo, desde que naturalmente viesse a ser objecto de decisões políticas de compromisso entre Madrid e Barcelona, tal como aconteceu entre Londres e Edimburgo. De resto, é para isto mesmo que serve a política.
Na verdade, não se trata de uma simples infracção da lei, de uma simples ilegalidade, porque é uma questão de natureza política e de grande dimensão, devendo ser como tal tratada. Subscrevo, por isso, e por inteiro, as palavras de Felipe González quando diz, referindo-se certamente à transferência do problema para o poder judicial, que “no me gusta hacer política amparándonos bajo las “togas”, prática que começa a estar preocupantemente generalizada um pouco por todo o lado e que começa a funcionar como a arma branca da política escondida para resolver problemas que não consegue resolver politicamente e à luz do dia.
Os assuntos políticos devem sempre ser tratados politicamente e o uso da força (ainda que sob a forma de lei) só agiganta os problemas.
Enfim,
O que preocupa é que o funcionamento da política em Espanha não tem vindo a dar provas de muita maturidade, se olharmos para o tempo em que, ainda recentemente, este fantástico País esteve quase um ano sem governo em plenas funções e se reflectirmos sobre o que agora está a acontecer na Catalunha.
Pessoalmente gosto muito de Espanha e espero que se possa alcançar uma solução razoável para este difícil problema. Que não é só espanhol, mas também português e europeu.