A concentração de serviços do Estado num único local já esteve prevista há uns anos numa zona de Lisboa em que seria criada uma Cidade Administrativa mas tratava-se fundamentalmente – disse-me alguém que teve pessoalmente contacto com os protagonistas – de um expediente para priorizar a extensão do metro até ao Colégio Militar, valorizando os terrenos da área.
Volta-se agora a falar desse objectivo na sequência de ter sido posto em causa outro processo de concentração – o dos serviços da Caixa Geral de Depósitos nas instalações construídas para o efeito na Avenida João XXI – que desagrada ao CEO Paulo Macedo entretanto reconduzido, o qual “ofereceu” as ditas instalações ao Estado em pagamento de uma parte dos fartíssimos dividendos angariados pela instituição de crédito. À custa de quê? Ver o artigo de Eugénio Rosa ainda recentemente publicado no Jornal Tornado.
Este caso do alojamento do Governo na ainda actual sede da Caixa foi concertado com o Governo de António Costa e sustado durante algumas semanas pelo Governo de Luís Montenegro para poder dizer que se tratava de uma “reforma” do segundo. Construindo-se uma narrativa de que se trataria DA reforma da Administração Pública (mais uma…) e que se iria poupar lugares dirigentes extinguindo-se todas as Secretarias-Gerais dos Ministérios, ou pelo menos de imediato uma parte delas, passando a existir uma única Secretaria-Geral do Governo, encimada por um Secretário-Geral de livre escolha – nada de concursos – principescamente remunerado….
A Secretaria-Geral do Ministério das Finanças, extinta em 1938 e recriada 27 anos depois
Não será mau recuar um pouco… até 1938, e, inevitavelmente, a António de Oliveira Salazar.
A Monarquia Constitucional e a I República, regimes de base parlamentar, não atribuíam um peso decisivo ao primeiro ministro ou presidente do Ministério. Salazar, tendo em 1932 sucedido neste cargo a Vicente de Feitas, que o convidara em 1928 para Ministro das Finanças, Ivens Ferraz e Domingos de Oliveira, ainda se referia inicialmente a si próprio como um Ministro das Finanças a quem fora confiada a Presidência do Ministério, e no ano seguinte ainda entregaria o apoio à Presidência do Conselho de Ministros resultante da Constituição Política da República Portuguesa – aprovada por plebiscito em que as abstenções contaram como votos a favor – à Secretaria-Geral do Ministério das Finanças.
Posteriormente à aprovação da Constituição, Salazar empenha-se na compra de imóveis que confinam com as instalações da Assembleia Nacional e realiza obras para instalar nestes uma Residência Oficial do Presidente do Conselho de Ministros, o que teria sido visto como inaceitável em pleno regime parlamentar. “S. Bento” passa assim a ser sinónimo de chefia do Governo e já não de Parlamento.
Em 19 de Maio de 1938, já sobrecarregado também com as pastas dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, para além da pasta das Finanças, faz publicar pela Presidência do Conselho o Decreto-Lei nº 28 671 (cria a Secretaria da Presidência do Conselho e extingue a Secretaria-Geral do Ministério das Finanças).
A Secretaria da Presidência do Conselho recorre a pessoal da livre escolha do Presidente do Conselho e contém a possibilidade de nomeação definitiva de pessoal estranho aos serviços do Estado inicialmente provido por contrato, mas o normativo inclui também disposições que, consagrando poupanças, amesquinham a instituição parlamentar:
Continuam a ser abonados pela Presidência do Conselho os dois motoristas destinados aos serviços dos Presidentes da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa, os quais poderão ser mandados prestar serviço em qualquer Ministério do intervalo das sessões legislativas.(i)
O pessoal menor necessário ao serviço da Presidência do Conselho, com excepção do condutor de automóvel, será destacado do da Assembleia Nacional, por escolha do Presidente do Conselho, sendo contado no quadro a que pertence e abonado pelas verbas inscritas para remuneração daquele.
Paralelamente, extingue-se a Secretaria-Geral do Ministério das Finanças, ficando a cargo da 1ª Secção (Expediente) da Repartição do Tesouro da Direcção-Geral da Fazenda Pública “os serviços que competiam à quela Secretaria-Geral. O pessoal em funções é integrado na Direcção-Geral da Fazenda Pública, mas um número de lugares equivalente ao acréscimo ficarão como lugares a extinguir quando vagarem.
Note-se que extinta a secretaria-geral, continuava a existir o cargo de secretário-geral do Ministério das Finanças, inerente ao de director-geral da Fazenda Pública, na falta ou impedimento do qual exerceria as funções de secretário-geral do Ministério das Finanças o director-geral mais antigo.
Quase seria de recomendar esta experiência de poupança de fazer o mesmo com menor despesa ao actual Ministro da Presidência António Leitão Amaro, não tivesse esta extinção da Secretaria-Geral do Ministério das Finanças sido revertida no próprio tempo de Salazar…
O que aliás ocorreu em dois tempos: em 1962 foi publicado um diploma que estabeleceu que o cargo de secretário-geral do Ministério das Finanças passasse a ser exercido por um dos directores-gerais do Ministério, escolhido pelo Ministro(ii), tendo sido nomeado Aureliano Felismino, Director-Geral da Contabilidade Pública, o que possivelmente terá tido a ver com a passagem a licença ilimitada do Director-Geral da Fazenda Pública, António Luís Gomes, no final de 1959. Em 2 de Junho de 1965 o Decreto-Lei nº 46 365 referindo
O considerável aumento de serviço que só pode ser executado por um órgão especial, independente das direcções-gerais, impunha que se ponderasse a conveniência de, no Ministério das Finança, se regressar ao regime anterior ao Decreto-Lei nº 28 671…
É criada a Secretaria-Geral do Ministério das Finanças…
Diploma assinado pelo Ministro das Finanças, António Manuel Pinto Barbosa, que deixará o cargo nesse mesmo ano, e por… António de Oliveira Salazar.
Não percebi ainda se o Ministério das Finanças vai ser encaixotado na Avenida João XXI e a sua Secretaria-Geral extinta. Há duas razões que militam contra isso:
- por um lado desde o século XIX que o Ministério das Finanças é não apenas um conjunto de serviços centrais mas um sistema de serviços desconcentrados que cumprem funções de apoio aos órgãos centrais e estabelecem relações com a população. Do ponto de vista funcional esta rede surge hoje em dia como uma rede desconcentrada da administração tributária, mas depois de Manuela Ferreira Leite ter “regionalizado” os serviços tributários do Arquipélago da Madeira, colocando-os na dependência do Governo Regional, não têm surgido novas propostas de “descentralização”;
- por outro no plano interno e externo, a identidade e a memória dos serviços do Ministério das Finanças exige um esforço de preservação.
Momentos de referência na problemática relativa às Secretarias Gerais
Será de incluir nestes momentos a realização em 1952 de um estudo da Comissão Central de Inquérito e Estudo da Eficiência dos Serviços Públicos criada em 1951(iii) e instalada / empossada no início do ano seguinte, que conduziu a um relatório para o qual concorreram o estudo da legislação sobre as secretarias-gerais de cada ministério, o lançamento de um inquérito a todos os secretários gerais e a realização nos meses de Julho, Agosto, Setembro e Outubro, através de funcionários requisitados pela Comissão, de exames nos Ministérios da Educação Nacional, Obras Públicas, Economia, Corporações e Comunicações.
Foi feito um levantamento exaustivo das funções exercidas pelas secretarias-gerais existentes entre as quais se encontravam responsabilidades no domínio de arquivos e bibliotecas comuns aos vários serviços dos respectivos Ministérios. Identificaram-se situações em que os cargos de secretário-geral eram, para além do caso do Ministério das Finanças, assegurados por Directores-Gerais dos respectivos Ministérios, e em que a autonomização de um Ministério não foi imediatamente seguida pela constituição de uma Secretaria-Geral o que foi o caso do Ministério das Comunicações.
Quanto ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em que por lei o secretário-geral era um funcionário diplomático considerado como O CHEFE da Secretaria de Estado(iv) explicava-se no relatório que a solução se inspirava no Civil Service britânico(v). Lembram-se do Yes, Minister?
O relatório da Comissão sobre as Secretarias Gerais a que na altura a Presidência da Câmara Corporativa(vi) teve acesso foi muito louvado por quem dele teve conhecimento mas, tal como outros dois relatórios da mesma Comissão nunca teve despacho ministerial apesar de a Comissão ser nominalmente presidida pelo então Subsecretário de Estado do Tesouro, António Manuel Pinto Barbosa. O Director-Geral da Administração Política e Civil do Ministério do Interior comentaria acerbamente o facto quinze anos depois, aquando da criação de um grupo de trabalho nº 14 – Reforma Administrativa no âmbito da preparação do III Plano de Fomento e teria de esperar 20 anos pela criação no seu Ministério – em 1973 – de uma Secretaria Geral distinta das Direcções-Gerais.
O 25 de Abril e a progressiva introdução de alterações no regime do pessoal dirigente que passou a ser nomeado em comissão de serviço levou à nomeação de secretários- gerais distintos dos directores-gerais mas a sucessiva criação de ministérios no âmbito dos VI governos provisórios e mais tarde a consagração constitucional da competência exclusiva do Governo em matéria de definição da sua própria estrutura levou a sucessivos processos de cisão / fusão de Secretarias–Gerais que me dizem agora já não serem levados até ao fim, por exemplo no caso do Ministério da Educação / Ministério da Ciência e do Ensino Superior.
O PRACE – Programa de Reestruturação da Administração Central que durante o ciclo de José Sócrates quis definir critérios estáveis e coerentes de definição de macroestruturas – que duraram até ao PREMAC de Passos Coelho – apontou várias missões às Secretarias – Gerais, onde destaco a externalização de funções de administração financeira das direcções – gerais dos seus Ministérios, por outro a gestão dos arquivos comuns dos Ministérios e a preservação dos acervos documentais dos organismos extintos.
Falando desta segunda parte, julgo que a situação é de catástrofe, ou sê-lo-á se se for para o anunciado extermínio das Secretarias-Gerais. Entre outras possíveis, duas referências.
A Secretaria-Geral do Ministério das Finanças tem feito um esforço notável de preservação e recuperação de memória de documentação que interessa ao Ministério, mas há um contra-exemplo que venho dando: a incapacidade de recuperar as actas e documentos, incluindo os relatórios de 1952, 1953 e 1955, da Comissão Central de Inquérito e Estudo da Eficiência dos Serviços Públicos, criada por Decreto em 1951 e instalada e empossada em 1952, e que NUNCA FOI EXTINTA. Tenho algumas páginas do Relatório de1952 sobre as Secretarias Gerais gentilmente digitalizadas pela biblioteca da Direcção-Geral da Administração e Emprego Público (DGAEP) mas porque esse relatório foi guardado por Diogo Paiva Brandão, responsável pela Secretaria da Presidência do Conselho e primeiro responsável pelo Secretariado da Reforma Administrativa, criado em 1967 sendo por ele oferecido nessa altura ao Secretariado, que conheceu diversas restruturações, e tendo o relatório acabado por integrar a biblioteca da DGAEP.
A Secretaria-Geral do Ministério do Ambiente, que ocupa o antigo edifício de O Século conserva vastíssima documentação produzida no âmbito do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho de Ministros / Departamento Central de Planeamento, Departamento de Prospectiva e Planeamento, porque este último faleceu quando num governo qualquer tinha sido arrumado na área do Ambiente. Maria José Oliveira e Cruz assegurou em 2006 a coordenação da publicação de Planeamento Económico em Portugal 1953-1974. Um Acervo Histórico, mas embora assegure a preservação e a consulta da documentação a Secretaria-Geral não tem, julgo, grandes condições para valorizar este acervo.
A Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros
A partir dos anos 1930 o reforço do apoio técnico e administrativo à coordenação do Governo, que a evolução política fizera ganhar peso em múltiplos países, foi várias vezes discutido no âmbito do Instituto Internacional de Ciências Administrativas, designadamente nos Congressos de Viena (1933), Varsóvia (1936) e Berna (1947). Participante neste último , Marcelo Caetano publicaria em Outubro de 1947 na Revista O Direito, um artigo intitulado “O Chefe do Governo e a organização dos seus serviços“. Durante o seu tempo como Ministro da Presidência conseguiu, em 1957, fazer publicar um diploma que criou a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, sendo Diogo Paiva Brandão elevado a Secretário-Geral. Este jurista assegura até 1975 o exercício do cargo de Secretário-Geral, preside ao Grupo de Trabalho nº 14 “Reforma” Administrativa, é o primeiro coordenador do Secretariado de Reforma Administrativa criado em 1967, em Decreto assinado por Salazar, gere a integração deste na Secretaria-Geral decidida por Marcelo Caetano em 1970 e mais tarde a sua novamente autonomização como Secretariado da Administração Pública. Mostra-se, no que foi publicando, um inteligente analista da evolução das funções do Estado. Em 1975 é nomeado novo Secretário-Geral mas Paiva Brandão manteve, com carácter vitalício, o estatuto inerente ao cargo.
Os Secretários-Gerais dos Ministérios são em geral pessoas discretas, um Secretário-Geral da Presidência do Conselho de Ministros ainda o é mais. José Maria Sousa Rego foi secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros de 2002 a 2016 e publicou em 2018 na Fundação Francisco Manuel dos Santos No centro do poder: Governo e administração pública em Portugal. Para além do relato da experiência e das conclusões que tira, o eco de um debate antigo: países há em que o chefe do departamento que dá apoio ao Governo assiste às reuniões do Conselho de Ministros e faz as actas, em Portugal preferiu-se criar na estrutura dos sucessivos Governos o lugar de Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros.
Uma sugestão a António Leitão Amaro, crie-se um lugar de Secretário-Geral do Governo, a preencher por um profissional – não necessariamente por concurso – mantenham-se os secretários–gerais dos Ministérios e vá-se gerindo uma estrutura de transição, preservando tradições e memórias na medida em que for aconselhável.
Notas
(i) Os deputados à Assembleia Nacional só eram retribuídos durante o funcionamento da Assembleia, isto é, durante o decorrer das sessões.
(ii) Decreto-Lei nº 44 406, de 20 de Junho de 1962.
(iii) Decreto 38 503, de 12 de Novembro de 1951.
(iv) Conjunto dos serviços sediados em Lisboa.
(v) Os serviços diplomáticos e consulares externos ainda em 1986 viam fixadas “dotações trimestrais” para funcionamento, correspondendo à fixação de quarters no sistema britânico.
(vi) Assegurada então por Marcelo Caetano.