Diário
Director

Independente
João de Sousa

Terça-feira, Julho 16, 2024

O Farripas

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

O Farripas é um cão triste. Vive num quintal pobre, sujo e sem plantas. Quando chove fica friorento e molhado, não tem uma casota. Apenas umas tábuas e uma placa de zinco para ali atirado ao descuido do dono. Nunca vai passear e por ali vive ao abandono sem um carinho ou afago.

O Farripas não sabe que como ele há muitos outros cães mal amados.

A ração é magra e quando chega vem de um tacho rapado à miséria em que vive o Sr Gervásio, seu dono, mais conhecido na aldeia pelo Espantalho.

A água, as mais das vezes, bebe-a o Farripas de uma poça enlameada que a chuva caridosa lhe traz.

No quintal do vizinho do lado, por alcunha o Malmequeres, há alguma fruteiras e flores selvagens que atraem os pássaros.

Dos pássaros o Farripas gosta, trazem-lhe a alegria dos anjos alados. De tal modo os pássaros estão acostumados à presença do cão tão abandonado que até dois melros se lhe aproximam aos pulinhos e lhe fazem uma alegre companhia. Por estas visitas se agita a cauda do cão de triste sina.

Nunca foi tosquiado. Os olhitos tristes estão cobertos de pelo sujo e emaranhado.

Quem lhe deu o nome foram os rapazitos da aldeia, num dia em que o Farripas, apanhando a cancela aberta, tinha fugido para o largo onde os miúdos da escola brincavam.

_Farripas! Farripas! Gritou a garotada.

E o cãozito que na altura ainda era jovem, conheceu as alegrias das festas de pequenada.

Mas logo, nem uma hora depois o Espantalho apareceu todo zangado, procurando pelo bicho a quem tão mal tratava. Cheio de medo o cão agachou-se contra a bicicleta de um dos meninos que lhe fizera uma festa na cabeça suja, mas delicada.

O Espantalho vinha, como sempre, todo abrutalhado e com um saco de serapilheira debaixo do braço. Pobre Farripas que de rabo entre as pernas nem tentou fugir de tanto medo que sentia, pois sabia de um saber antigo e sem palavras, que ia ser castigado.

Metido dentro do saco, arrepiado, triste e a ganir, lá voltou o Farripas para o quintal onde vivia aprisionado.

Foi um dia sem comer, onde só uma chuva miudinha o veio ajudar a dar alento à língua ressequida e às dores que as pauladas vingativas do Espantalho lhe tinham caído no lombo emagrecido.

Mas chegou o dia em que a sorte da triste vida do Farripas pareceu mudar.

O vizinho Malmequeres desapareceu depois de mais uma das suas valentes bebedeiras. Outras pessoas chegaram à casa do lado.

O Farripas conseguia ouvir vozes de pessoas e de criançada, as vozes que lhe lembravam sempre aquele dia da fuga em que um menino lhe fizera festas na cabeça e ele se sentira feliz por uma vez.

Uma cabeça apareceu por cima do muro que separava o quintal do Espantalho do quintal de defunto Malmequeres. Uma criança pareceu agitada e passados alguns minutos o bom do Farripas via uma cabeça toda encaracolada a assomar ao cimo do muro. Era o Filipe, o novo vizinho do lado. Depois surgiu outra cabeça com olhos de ternura espantada.

O cão maltratado pressentiu do fundo do seu mundo tão limitado que talvez dali viesse alívio à sua vida de animal desprezado.

Passado algum tempo ouviu um estranho apito contínuo e levantou-se, a custo, do chão todo sujo à sua volta.

_ Espera aí, Farripas. Vamos ajudar-te. O teu dono não te merece, vem aí a Guarda e vamos levar-te.

Vais connosco ao Veterinário, vais ser tosquiado e lavado com água quentinha, vais ser acarinhado.

O cão de olhos sempre tristes alteou as orelhas sujas ao reconhecer a voz do Filipe, o menino que o acarinhara.

Estavam a chegar mais pessoas. Desta vez o Espantalho não teve oportunidade de pegar no saco de serapilheira para esconder a sua malvadez de homem só e pela vida mal tratado. Abriu a porta à Guarda e sentou-se no mocho onde costumava enrolar cigarros de barbas de milho e beber até cair para o lado. Ainda tentou dar umas desculpas mal amanhadas:

_ Esse bicho que aí levam é um mal agradecido! Quantas vezes tirei pão da minha boca para o alimentar _ mentiu ele tentando ainda ganhar as boas graças das pessoas que lhe entravam pela casa adentro e que ele não se sentia capaz de enxotar.

O Farripas foi levado à tosquia e ao banho. Tinha feridas na pele, infetadas. Curariam. Mas a alegria que sentia de ser ver cuidado, fazia o coraçãozinho bater-lhe de felicidade.

 

Ilustração: O Farripas, de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90



Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

 

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

Artigo anterior
Próximo artigo
- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

Uma Aventura | Na Caixa

Mentores espirituais

Manuel de Azevedo

Auto-retrato, Pablo Picasso

- Publicidade -